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A floresta, a garota e a Escuridão


Sinopse: Lira é uma jovem camponesa com um segredo perigoso demais para ser revelado. Apenas a Floresta conhece os seus segredos, ou pelo menos era isso que ela imaginava... Quando um terrível acontecimento acomete sobre sua família, algo em seu coração desperta, algo que sela o seu destino para sempre e põe toda a Floresta em perigo. O caminho do ódio pode ser tão destrutivo quanto a morte...  Até onde você iria por vingança? 

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A garota não sabia exatamente o motivo, mas ela gostava de lá.

Era tranquilo, mas perigoso. Era mágico, mas misterioso. O som das folhas umas nas outras, a meia luz e os reflexos caleidoscópicos em todas as cores do arco-íris quando cada raio solar incidia sobre as tranquilas águas dos límpidos riachos...

Ah, era realmente o lugar mais lindo que ela já vira em toda a sua vida. Por isso, ela sempre achava um motivo diferente para atravessar as primeiras árvores da Floresta dos Pardais, fosse para trazer água para a fazenda ou para recolher um pouco de lenha. Seu irmão era mais forte e poderia facilmente levar muito mais madeira de uma vez a seus pais, para aquecer as noites frias. No caso de Lira, ela teria que voltar uma série de vezes no mesmo dia para cobrir o suprimento semanal, mas não se importava nem um pouco, pelo contrário. Respirar o mesmo ar daquele ambiente mágico era a melhor parte do seu dia.

Não era uma vida ruim. Só era um pouco... chata. Os eventos se repetiam sem fim todo dia, num ciclo sem fim. E toda vez que seus pais iam até a cidade mais próxima, para trocar mercadorias, ela ficava em casa para cuidar de seu irmão mais novo, fazer as refeições para quando eles chegassem e regar a plantação.

Ela amava sua família, mas crescia em seu coração a vontade de conhecer outros lugares. No entanto, nada disso seria possível no futuro próximo, ela sabia disso, pois eles dependiam dela, e ela não poderia e não deveria deixá-los à própria sorte. Eles deveriam se preparar para o inverno e ela precisava se dedicar à fazenda. Seu pai costumava dizer que ela estava cada dia mais preparada para administrar a fazenda e essa responsabilidade pesava em seus ombros cada vez mais.

Ir à floresta, ouvir os pássaros e falar com os Sardoks, aquelas meigas criaturas mágicas com juba de leão, olhos de gato e caudas preênsil que adoravam as frutas que ela levava, eram suas atividades favoritas do dia. Ela se sentia livre, livre das responsabilidades e da vida que tinha sido planejada para ela.

Mas havia um segredo que somente sua família e a floresta conhecia. Um segredo que, em parte, tinha sido motivo para que seus pais, Zhini e Saruy, quisessem que ela herdasse a fazenda e não seu irmão: ela era uma bruxa.

Era algo que ela nunca escolhera, tinha sido dada a ela, como uma dádiva, ou maldição, antes mesmo dela nascer, pois sua mãe também compartilhava o mesmo dom, embora tivesse irremediavelmente negado essas habilidades, pois seria muito perigoso para todos eles se as outras pessoas soubessem disso.

O povo era cruel, quando se tratava da magia. Para eles, bruxos e feiticeiros eram criações malignas, seres a serem temidos e que deveriam morrer. Isso incitou muitos atos desumanos e catastróficos para com aqueles que praticavam magia. Portanto, Zhini, muitos anos antes, tinha escolhido deixar de lado sua herança de sangue, e fizera sua filha prometer jamais praticar magia, com medo de que ela fosse flagrada fazendo algo que os camponeses das redondezas não pudessem explicar. Por isso, seria mais seguro que ela ficasse ali, na fazenda, longe da civilização. Seu irmão, por outro lado, não tinha manifestado qualquer resquício de magia, o que o livrava do dever.

“Sortudo”, tinha pensado Lira já centenas de vezes. “Esconder meus poderes já não é o suficiente? Eu sei ocultar bem, ninguém nunca iria descobrir...”. Mas mesmo com todo o medo das consequências, a jovem não reprimia a magia, quando estava longe dos olhos curiosos, e que lugar mais seguro do que a Floresta dos Pardais? Deixava seus poderes fluírem pelas pontas de seus dedos até as pétalas das flores, que se abriam alegremente ao seu redor, como que sorrindo por sua liberdade. Às vezes, conseguia projetar campos de força ao seu redor, para se proteger dos numerosos mosquitos e das criaturas da noite, quando ficava lá por mais tempo do que deveria.

E, embora isso fosse algo impressionante para ela, suas habilidades eram desajeitadas e foram logo rastreadas por aqueles que sabiam reconhecer a magia e não tinham medo de usá-la.

Não muito tempo depois do aniversário de 10 anos de Lian, a morte rondou a família Wilkinson Dufonté, como uma sombra. Naquele ano, as plantações morreram antes mesmo do inverno e todos nas redondezas se viram obrigados a procurar emprego nas cidades, pois somente assim teriam dinheiro e comida para sobreviver aos longos meses frios que se iniciariam, até que as plantações voltassem a crescer a gerar renda. Suray e Zhini conseguiram empregos como auxiliares em uma venda a alguns quilômetros de onde moravam, numa pequena cidade. Eles tinham trabalhado apenas duas semanas naquele local e seus rostos estavam mais magros do que nunca, pois os serviços eram extremamente desgastantes e não havia dinheiro o suficiente para comprar mais do que algumas gramas de milho e ervilhas. Suray era o mais magro da família e naquele estado, ele mal se mantinha em pé. Não foi uma surpresa quando suas pernas não tiveram forças para sustentar um caixote de mercadorias e o som do acidente chamou a atenção de todos os funcionários e de alguns moradores que por ali passavam.

Zhini chorava enquanto tentava, em vão, tirar o caixote de cima da perna quebrada do marido. Da fratura exposta o sangue escorria ininterruptamente e o rosto do homem era pálido como o de um morto. Em seu desespero para salvar o marido, Zhini fez o impensável: conjurou sua velha magia. Aqueles ao redor do casal viram, com seus próprios olhos, o caixote se mover sozinho para longe, a fratura cicatrizar e o sangue parar de escorrer.

E naquele mesmo momento, todos souberam que aquela mulher era uma bruxa.

O que houve em seguida foi tão terrível que Saruy nunca teve coragem de dizer aos filhos. Ele disse somente que sua mãe havia sido morta por ignorantes, que eram incapazes de compreender que alguém que praticasse magia poderia ser bom. Ele não pudera fazer nada para impedir e aquelas imagens o marcaram para sempre.

Saruy nunca mais fora o mesmo. Sua depressão era tão profunda que ele não conseguia dormir, nem ao menos comer. As raras vezes em que Lira conseguia fazê-lo se alimentar eram bençãos muito bem vindas, mas cada vez menos frequentes. E depois de dois longos e tristes anos, ele deu seu último e prolongado suspiro e Lira e seu irmão enterraram seu pai, na beira da floresta, ao lado de um túmulo improvisado e simbólico que tinham feito para Zhini, pois seu corpo nunca foi recuperado.

Então, subitamente, a garota se viu exatamente na posição de assumir o posto de seus pais e suas esperanças de rebeldia se foram juntamente com a última lágrima que derramou por eles dois. Ela agora tinha que cuidar de seu irmão, e eles iam juntos à floresta para buscar alimento quando a plantação morria ou simplesmente para apreciar a natureza.

Naquele tempo, ela se permitiu abrir aquele mundo para o jovem, que agora era de sua inteira responsabilidade e por muito tempo Lira foi como uma mãe para seu irmão, embora ela soubesse que ele era incapaz de compreender porque ela ainda se permitia praticar magia, mesmo que ali, entre as árvores, na companhia somente dele e das criaturas e espíritos da floresta.

Ela o ensinou sobre os Elementais, seres mágicos que habitavam cada pedra, cada árvore e cada gota de água dos riachos virgens da Floresta dos Pardais, lhe contou histórias sobre as crianças perdidas que eram salvas pelos Sardoks, lhe ensinou a alimentá-los e a respeitar tudo que ela havia aprendido a amar naquele lugar.

E durante todo aquele tempo, ela se viu feliz. Feliz como acreditava que não se sentiria mais, agora presa àquela vida e sem a proteção dos pais.

Mas aquela ligação se desgastou com o tempo, pois novamente ela sentiu o peso de ter que se esconder por toda a vida. Mas como poderia partir? E seu irmão? Eles tiravam seu sustento da fazenda, da terra, como poderiam sobreviver sem isso? E mesmo se pudessem, não estaria decepcionando seus pais? Ela tinha prometido cuidar daquela fazenda... E havia aquele ódio, aquela raiva que ela sentia sempre que fechava seus olhos e pensava em seus pais, vítimas de algo fora do seu controle, algo maior do que eles: a intolerância.

E esse sentimento a tornou mais séria com o tempo e aquelas pequenas coisas que faziam com que moça sorrisse tornaram-se, para ela, meras sombras do que um dia foram, o que incluía visitar a floresta com seu irmão. Lian também sentia sua irmã se afastar, com o pensamento constante em uma vida que não pertencia a ela, e o medo de um dia perdê-la também contribuiu para distanciá-los ainda mais.

Um dia fatídico, Lira acordou, abraçou seu irmão, que já tinha 17 anos na época, foi à floresta buscar água no riacho... e nunca mais voltou. Lian ficou aquele dia todo e a noite também, olhando o mesmo ponto onde ela tinha adentrado entre as árvores e quando não pôde mais esperar foi até aquele lugar que tinha aprendido a apreciar, mas as palavras dos Sardoks, quando lhe contaram o que havia acontecido, lhe pareciam mentira, embora ele soubesse que eles não sabiam mentir.

- Ela foi embora, Lian Wilkinson Dufonté. Homens e mulheres com mantos negros surgiram à beira do rio quando ela se abaixou para encher o cantil com água e quando ela se surpreendeu eles mandaram que ela se acalmasse, se apresentando como o seu verdadeiro povo.

- Bruxos? – Indagou o menino, com o rosto aflito e seu olhar se tornou sombrio quando aquelas pequenas criaturas assentiram, em uníssono.

- Eles disseram que não havia vida para ela aqui e que com eles, ela poderia ser livre, descobrir a verdade sobre seus poderes e sobre seu potencial.

“Como ela poderia me deixar assim?”, dizia uma voz na sua cabeça. Grande parte de seu ser foi incapaz de acreditar nas ações egoístas de sua irmã, mas ela não voltou no dia seguinte, e nem no seguinte... e no quinto dia de espera ele finalmente entendeu.

Entendeu que não havia motivo mais para esperar que ela retornasse. Ela não o faria, e ele deveria simplesmente aceitar.

Os anos passaram e Lian conseguiu vender aquelas terras, enquanto que, à Lira foi apresentada a triste realidade que aqueles que a levaram queriam que ela visse, aquilo que sua mãe mais temia à sua filha: em muitas cidades que visitava, o povo sempre cometia atrocidades para livrar a terra dos praticantes de magia, queimando suas casas ou executando famílias inteiras, se fosse necessário. E, dentro dela, crescia o ódio por cada uma daquelas injustas ações. Um ódio tão profundo que obscureceu seus pensamentos.

E isso selou o seu destino.

 ...

Quando a Floresta dos Pardais conheceu a Escuridão pela primeira vez, ela tinha um nome muito familiar, um nome que ela não ouvia havia muito tempo.

Seu coração não tinha mais espaço para amor. A Escuridão não sabia apreciar o mundo mágico que se escondia por entre as árvores, mas mesmo assim os Sardoks vieram vê-la, para dar-lhe as boas vindas, muito embora alguns ainda se lembrassem da sombra de decepção nos olhos do jovem Lian Wilkinson, pois aquela, diante deles, era a irmã que o havia abandonado. A mesma menina que eles um dia amaram e que os tinha deixado também, sem ao menos dar adeus.

E os mesmos olhos castanhos que um dia foram cheios de luz, agora eram foscos como se não houvesse vida atrás deles.

Toda a floresta sentia o poder maléfico que emanava daquele pequeno vulto. Ela parecia frágil, mas seu poder era imenso.

Quando as náiades e as ninfas da floresta espiaram naquela direção, todas elas e tudo mais na floresta sentiu o frio que emanava daquele ser, completamente oposto a tudo naquele lugar. Suas vozes soaram como uma só, cautelosas, mas firmes.

- O que você quer conosco?

Lira apenas sorriu e deu mais um passo em direção ao riacho mais próximo. Ela não parecia ter envelhecido um único dia sequer, desde a última vez que a tinham visto. Quando sua voz soou, era exatamente a mesma que a floresta já tinha ouvido tantas vezes, mas seu tom era perigosamente calmo. – Vim rever vocês, meus amigos. Vocês não têm ideia dos lugares que visitei, das coisas que conquistei.

- Ah, temos uma ideia. Soubemos de sombras ao sul daqui, sombras que avançam, se contorcem vivas, como o mal que está dentro de você. – Rosnou um Sardok, se afastando da mulher à sua frente, como se fosse uma doença contagiosa.

- Que surgem de todas as partes, engolem tudo pelo caminho... – Tremeu uma ninfa, com os olhos vidrados na Escuridão. - Soubemos de monstros e de outros seres cujos nomes são impronunciáveis, de bruxos queimando cidades inteiras.

- Sim, liberdade afinal! – Gritou Lira, satisfeita. – Minha revolução está tomando grandes proporções afinal... confesso que não achava que conseguiria, mas meus amigos semelhantes, os outros bruxos, me ensinaram que nada é impossível para quem domina a magia, isso infelizmente minha mãe não sabia, talvez a tivesse salvado da morte, pelas mãos daquelas... pessoas terríveis. Mas agora, eu estou vingando Zhini Dufonté e também meu amado pai, o único humano normal que nunca me julgou.

- Seu irmão nunca te julgou, Lira Dufonté. – Disse uma náiade, seu rosto feito d’água era translúcido, mas suas feições eram bem claras, e exibiam preocupação.

- Quem? Lian??? – Vociferou a bruxa e sob seus pés, as flores e a grama murcharam e desfizeram-se, como pó. – Lian foi quem mais me julgou, eu podia ver em seu olhar que ele não confiava plenamente em mim, mesmo eu sendo sua irmã! Ele tinha temor de meus poderes. Assim como os outros.

- Ele nunca teve medo de você. – Continuou a mesma náiade e suas colegas concordaram, em silêncio. – No fundo, você sabe disso. Mas, se quer saber, ele nunca se recuperou do que você fez a ele.

- O que? Deixá-lo aqui? Eu fiz um favor a mim mesma e a ele. Lian não era um bruxo, logo não poderia ficar comigo e minha... espécie. E ele só atrasava minha vida. Mas hoje eu não vim falar de Lian, meus caros. Hoje eu convido vocês a se juntarem a mim e à revolução. A Era das Trevas está por vir, e acreditem, vocês vão querer estar do meu lado quando eu apunhalar o rei no coração e pisar nos corredores daquele lindo palácio na capital.

- Nós nunca nos uniríamos à Escuridão, Lira Wilkinson Dufonté. – Respondeu o líder dos Sardoks, pondo-se à frente, a juba arrepiada como que para fazê-lo parecer maior. Com essas palavras, as árvores pareceram se encurvar, concordando, e até mesmo o som do riacho pareceu se tornar mais hostil, quando as náiades se remexeram, preparando-se para atacar, caso fosse necessário.

Mas Lira ria-se, calmamente. – Por que será que todos os Elementais e criaturas da floresta pensam o mesmo? Vocês são tão previsíveis. Mas isso me deixa triste, pois queria vocês ao nosso lado voluntariamente, embora eu entenda, agora, que isso não é possível, não é mesmo?

Não houve resposta. Com os olhos faiscando, as ninfas invocaram arcos de madeira com flechas de ponta feita de obsidiana, e quando a bruxa olhou ao redor, se deu conta de estar cercada de centenas deles, uma para cada árvore da floresta. Nas sombras entre os galhos, ela pôde enxergar o brilho dos olhos dos lobos que faziam morada ali, com os dentes à mostra, como máquinas de matar.

- Presumo que isso confirme minhas suspeitas, afinal. É realmente uma pena, porque eu terei que obter a lealdade de vocês à força, assim como eu fiz em tantos outros lugares até aqui.

E sem qualquer aviso, em suas mãos surgiram duas lâminas tão afiadas quanto a melhor espada já fabricada naquele reino. As lâminas atravessaram o ar, mais rápidas do que o olho humano poderia acompanhar, e se fincaram não no coração de seus inimigos, mas nos troncos das árvores. A seiva escorria como sangue, e ao lado das duas desafortunadas plantas, suas respectivas ninfas caíram de joelhos, tremendo de dor e solidão, encolhidas e deixando seus arcos caírem inofensivos. E ao redor de cada lâmina, a aparência das árvores mudou: não era mais marrom com musgos coloridos e casca lisa, mas tinha agora inúmeras rachaduras em sua superfície e o tronco parecia negro como o céu noturno. A doença avançou como uma praga, atingindo os galhos e as folhas, que perderam sua vivacidade para apresentar tonalidades monótonas de amarelo e cinza. Ao mesmo tempo, as pobres ninfas perdiam seu leve brilho e a pele das duas eram de um cinza sem vida. Seus olhos que antes eram verdes como a cor das folhas saudáveis tornavam-se negros como o mal que emanava do coração sem amor da bruxa Lira. Aos outros seres da floresta somente restou olharem impotentes suas duas amigas se tornarem criaturas temerosas, com garras imensas, cabelos cinzentos e desgrenhados como palha e pele quase transparente. Os dentes eram afiados como adagas e suas expressões eram de pura maldade.

Ao comando da bruxa, os seus dois monstros criados investiram contra a horda de protetores da floresta, e as árvores doentes estenderam suas raízes como tentáculos para agarrar as presas mais desavisadas. Mais duas lâminas materializaram-se nas mãos da Escuridão e, como uma sombra maligna, ela atacou seus antigos amigos, derrubando um por um, transformando mais e mais espíritos bons em monstruosidades inomináveis, das mais variadas e temíveis formas.

Ao final daquele terrível dia, muitas das ninfas da floresta estavam mortas ou feridas, e o restante tinha sido transformada. As náiades tinham sido brutalmente assassinadas, e suas águas tinham secado. Somente um único riacho ainda fluía próximo ao centro da floresta e lá as últimas náiades mostravam resistência à escuridão que espreitava ao redor. Lira não tinha se dado ao trabalho de destruir as restantes, pois seus poderes agora eram muito maiores do que a pouca resistência que ainda havia naquele lugar. Ninguém ali nunca mais ousaria atacá-la. Não se quisesse viver.

As únicas ninfas boas retornaram às suas árvores de nascença, em busca de proteção, onde os espíritos atormentados de suas irmãs transformadas não poderiam lhes fazer mal, dando também abrigo aos poucos grupos sobreviventes de Sardoks.

E então Lira tinha finalmente um exército, ali também. Aquelas atrocidades não se mantinham mais presas às suas essências primordiais e, por isso, não necessitavam ficar próximas de sua floresta para existirem. A bruxa então mandou que marchassem de cidade em cidade, e por onde passavam elas trouxeram destruição e morte. Naquele tempo, a Floresta dos Pardais não era nada parecida com o que fora um dia: no chão, seres monstruosos rastejavam, atraídos pelo mal que irradiava naquele ar envenenado. O medo e o terror eram como formas vivas e conscientes, que impregnavam os corações de todos que se aventuravam naquele lugar amaldiçoado e isso fez que com ela fosse evitada, a todo custo, pela população do reino. Tornou-se um palco de pesadelo, presente nas mais assustadoras histórias de terror durante a Era das Trevas, o mal disseminado por Lira Dufonté e seus aliados quase derrubou a coroa.

Mas os anos passaram e passaram e aquelas terras finalmente viram a luz novamente. A última fortaleza dos bruxos caiu e, junto com ela, aqueles feiticeiros viram o fim de seu domínio de medo e a aliança do mal foi derrotada, de uma vez por todas.

Mas nem todos os exércitos do reino conseguiram derrotar a bruxa mais poderosa. Ela jurou vingança à coroa e se escondeu, envergonhada por seu fracasso homérico.

 ...

Quando a Floresta dos Pardais conheceu a Escuridão pela segunda vez, ela tinha um nome muito familiar, um nome que ela havia aprendido a temer.

Aquela figura, magicamente imortalizada num jovem e cruel rosto, pisou na terra seca e morta e tocou nos troncos das árvores aterrorizadas, se sentindo como que em casa. Sem dar uma palavra, ainda com a vergonha estampada fragilmente em suas feições, ela caminhou até o centro da floresta, onde invocou sua magia e os seres das sombras para construir uma nova casa, ali, longe da civilização que ela tanto odiava. Longe do mundo, onde ela poderia pensar em uma nova forma de se vingar.

Era uma cabana simples, nada muito luxuoso, mas ela simplesmente não poderia correr o risco de construir algo que se destacasse na vegetação. Ela sabia que, mesmo com os perigos, as pessoas às vezes iam até a floresta, e ninguém poderia perceber sua presença ali. Se construísse uma casa grande ou alta demais, seria facilmente vista, acima da copa das árvores e através da vegetação.

Não, ela teria que manter seu paradeiro em segredo. Agora que muitos de seus aliados estavam mortos, não seria sensato abusar da sorte.

Ali, ela planejou e estudou. Seus servos monstruosos ficaram incumbidos de lhe trazer o conhecimento necessário e eles assim o fizeram e depois de um tempo, ela já tinha prateleiras repletas de livros antigos, livros de feitiçaria.

O riacho que ainda corria na Floresta dos Pardais tinha sido escravizado por ela, e sua água continuava a sustentando, sempre que necessário. Naquela clareira bem no centro, ela era rainha. Rainha de um mundo de escuridão, de sofrimento. Mas... não era o bastante, não enquanto aqueles que a tinham derrotado não tivessem pago por isso, com suas vidas.

Foi um tanto demorado, mas ela finalmente conseguiu finalizar sua vingança final. Já que seus pais tinham lutado e trabalhado até a exaustão para que sua família tivesse alimento, parecia-lhe muito justo que os outros também lutassem para ter trigo e ervilhas na mesa, todo o dia.

O feitiço era uma doença, uma praga terrível e cruel que atingia a vegetação por onde passava, destruindo plantações inteiras. Seu efeito começou a ser notado no Norte e aos poucos avançou para o Sul, desestabilizando a economia do reino e causando fome em massa na população. E a cada tentativa inútil de recuperar as plantações ou alimentar o povo mais afetado pela queda nas produções, Lira se sentia mais e mais satisfeita com seu projeto macabro, pois em questão de meses os camponeses tinham perdido a fé na coroa e a desordem reinava em cada condado da região.

- O que você fez? – Disse uma voz conhecida, uma voz que Lira detestava. Talvez, ainda mais do que detestava a coroa.

Ali, diante da porta aberta de sua cabana, estava um velho de barba longa e cabelos compridos grisalhos, vestindo um manto em retalhos de diversas cores. O velho estava aparentemente desarmado, mas ela sabia que aquele homem era tudo, menos indefeso.

Seus olhos se cruzaram e Lira limitou-se a abrir um leve sorriso quando se levantou da cadeira para ficar frente a frente de seu adversário.

- Você tem muita coragem de vir aqui, atrás de mim, depois de tantos anos. Veio pedir desculpas?

- Vim terminar o que comecei. – Disse ele, com uma voz gentil, mas firme.

- Tem certeza de que não quer um chá antes? Acho que você se lembra do quão bem eu sei fazer um chá. – Disse ela, ainda com o sorriso petrificado no rosto eternamente jovem.

- Ah, não obrigado. Eu conheci outra Lira, não era você. Aquela Lira era gentil e amava esse lugar. Olha o que você fez com ele? – Ele apontou para fora, para a floresta, onde a névoa escura ainda perambulava próxima ao chão. – O ar tem cheiro de morte. Você corrompeu a própria terra da floresta, tão fundo que nem eu mesmo conseguiria recuperar o que você destruiu, sozinho.

- Quem te deixou entrar? – Exclamou ela, alto. – Todos os meus servos sabem quem você é, não iriam deixar você simplesmente andar por esse lugar, sem ao menos me avisar! Nem o feitiço de invisibilidade iria te salvar.

- Acho que eu tive um pouco de sorte, não tive que lutar com nenhum deles e... – O velho foi interrompido por uma força que o impulsionou para longe, para fora da cabana, como uma mão invisível, com um simples pensamento da bruxa. O sujeito caiu ruidosamente no chão duro da clareira e Lira o seguiu, fechando a porta atrás de si.

- Meus poderes estão melhores a cada dia, velho. Vamos ver o que você tem para me mostrar! – Disse ela, com um brilho no olhar.

Suas lâminas gêmeas materializaram-se em suas mãos quando ela deu um giro mortal para apunhalar o seu maior inimigo, seu irmão, Lian Wilkinson.

Ela tinha tido alguns poucos encontros, nada agradáveis, com seu irmão, ao longo dos anos da Era das Trevas. Ela não sabia como ele tinha aprendido a praticar magia, mas sinceramente... ela não se importava. Ele foi um homem muito querido na realeza e para ela, um traidor dos bruxos. Na sua perspectiva, Lian tinha dado as costas para ela, sua verdadeira família. Na perspectiva dele, ela representava o mal que ele deveria enfrentar para evitar mais mortes de inocentes.

Ambos estavam tão focados em seus pontos de vista que tinham deixado de ser irmãos há muito tempo. Agora, eles eram apenas dois inimigos que lutavam em lados opostos, muito embora ainda houvesse algo em Lian que sofria sempre que ele encontrava com a bruxa.

Para a surpresa da Escuridão, as lâminas de suas adagas foram desviadas por uma espécie de campo de força, que se desfez com o choque. Quando ela voltou a olhar para seu oponente, ele empunhava o que parecia ser uma espada feita puramente de energia. Ele investiu como um raio, forçando Lira a se defender com as lâminas gêmeas e quando as armas se chocaram, um som de metal retiniu pela floresta, quase como se aquela forma energética que Lian brandia fosse feito de aço. “Talvez corte também como aço, melhor ficar longe dessa coisa”, pensou ela investindo novamente.

A batalha pareceu equilibrada por um tempo, enquanto os dois aparavam o ataque um do outro, mas Lira ordenava mentalmente, sempre que podia, que seus servos viessem até ela. Lian não seria capaz de sobreviver a todos eles.

- Então, você veio aqui me matar?  Disse ela, ofegante, enquanto movia suas lâminas com destreza, tentando confundir o adversário. “Talvez a conversa o faça perder a concentração”. – Não seria a primeira vez.

- Isso que você fez é maior do que nós agora, Lira. Eles estão chamando de Doença do Reino e o povo está morrendo de fome com a destruição das plantações. E eu sei que foi você. Para salvar o povo, a fonte do feitiço deve ser destruída.

- E a fonte sou eu.

- Sim... eu não gostaria disso. Eu nunca quis, mas como eu disse, vai além de nós.

Com essas palavras Lian subitamente abaixou-se, bem a tempo de se esquivar de um ataque direto, e investiu o cotovelo na lateral do joelho direito de sua atacante.

A dor do golpe inusitado irradiou como uma descarga elétrica ao longo de sua perna a ponto de fazê-la perder o equilíbrio. Lira desabou no chão, deixando cair uma das adagas gêmeas de sua mão e Lian não demorou a apanhá-la do chão e arremessá-la na direção dela.

A arma girou no ar como um bumerangue, mas antes mesmo de atingir a bruxa, desfez-se em nada, no ar. Ela levantou-se depressa, rindo alto.

- Você achou que eu deixaria que usassem minha arma contra mim? Elas obedecem apenas ao meu comando, existem quando eu mando e deixam de existir quando eu quero assim. Mas... você me deu uma ideia.

E usando o mesmo movimento, Lira arremessou a sua lâmina restante em direção ao irmão. O velho mago posicionou sua arma para aparar o golpe, mas no último momento a lâmina desviou do caminho original, obedecendo ao desejo de sua mestra, se alojando na perna esquerda do homem, que caiu de joelhos, o sangue escorrendo.

E então, finalmente a clareira pareceu se encher de vida. Lian olhou ao redor e viu seres medonhos tirados dos piores pesadelos pensados, com garras gigantescas e línguas bifurcadas. Vislumbrou criaturas feitas de sombra e seres de olhos brilhantes, ocultos pela mata. E eles estavam em todo o lugar.

O mago respirou fundo, arrancou a lâmina afiada da ferida e concentrou seus poderes de cura na perfuração, o que imediatamente parou o sangramento, mas manteve a dor. Com alguma dificuldade, ele se levantou, mas o velho sabia que, se tivesse que correr para salvar sua vida, morreria tentando. Não havia condição de correr naquela situação.

E Lira também sabia disso.

- Você não vai escapar, mago. Chegou a hora de aceitar a derrota.

- Só acaba quando sobrar somente 1 de nós, bruxa. – Suas palavras foram acompanhadas de um brilho ofuscante que preencheu aquele ambiente de luz, algo que não havia naquela floresta havia anos.

A luz era tão forte que Lira e seus monstros tiveram que desviar o olhar e do núcleo daquela esfera de energia surgiu um feixe luminoso que atingiu a mulher com uma força descomunal, sufocante e quente, tão quente que as mãos que protegiam seu rosto criaram bolhas e o chão ficou chamuscado.

Mas, de alguma forma, ela conseguiu encontrar concentração para usar sua magia e no segundo seguinte seu corpo emitia uma sombra negra que a protegia do calor fervente como uma espécie de armadura.

Vagarosamente, ela avançou, enquanto a luz a impedia de ver a cena ao seu redor e, às vezes, a energia luminosa era tão grande que a empurrava para trás. Ao longe, acima do som ensurdecedor provocado pelo feitiço solar de Lian, ela conseguia ouvir os gritos de pavor de suas criaturas. Para elas, aquela luz era terrivelmente dolorosa, mas em seu coração sombrio, ela sabia que o irmão não conseguiria manter aquele tipo de encantamento para sempre.

E estava certa. Alguns minutos depois, a luz enfraqueceu e desapareceu. No lugar da fonte luminosa estava Lian, arrastando-se vagarosamente no chão, com a espada de energia ainda na mão, o olhar fixo no dela.

Enquanto ela olhava, uma de suas feras se aproximou do velho mago, o cheirou e mostrou os dentes, numa expressão de avidez, mas antes que a criatura pudesse fazer qualquer coisa com ele, sua mestra levantou a mão, ordenando que o deixasse em paz. A bruxa, então, se agachou ao lado do sujeito e sorriu levemente, e Lian achou ter visto algo como compaixão naquele rosto tão conhecido e desconhecido. Porém, tão logo a expressão surgiu, subitamente desapareceu, deixando lugar para o ar triunfante.

- Você não aprende, não é mesmo, irmãozinho?

- Não me chame assim.

- Não se preocupe. Se depender de mim, eu não vejo o seu rosto nunca mais na minha vida. Não volte mais aqui, da próxima vez vou te matar, isso eu posso prometer. Ah, e diga aos seus amiguinhos Sardoks para não voltarem a me desafiar. Eu sei muito bem que foram eles que te ajudaram a chegar ao centro da floresta sem que meus monstros o vissem.

- Pode deixar que eu aviso. – Disse o mago, levantando-se com dificuldade. Quando ele voltou a andar, de volta às árvores, os monstros ainda pareciam acompanhá-lo com o olhar. Lian virou-se somente mais uma vez para sua irmã, mas não trocaram nenhuma palavra, embora houvesse ali, de certa forma, uma conversa silenciosa.

“Eu vou voltar, e eu não vou falhar da próxima vez”.

“Eu vou estar preparada”.

Decepcionados, os Sardoks da floresta amaldiçoada observaram do alto das árvores a derrota de seu maior defensor, mas mesmo assim, havia uma chama de esperança brilhando nos seus espíritos, porque eles haviam visto, com seus próprios olhos, o que Lira Dufonté mais odiava nela mesma: ela era mortal, afinal, ela tinha fraquezas. E, por isso, ela poderia ser derrotada.

E, enquanto houvesse esperança nos corações daqueles pequenos animais, haveria esperança para a Floresta dos Pardais.

E Lian sabia disso, em seu âmago ele podia sentir que seria chegada a hora... o momento em que surgiria alguém capaz de ajudá-lo a livrar o povo da Doença do Reino. Só então, ele teria que retornar ali, novamente, para acabar com aquilo de uma vez por todas.

Fosse qual fosse o resultado. Tudo havia começado com dois irmãos e haveria de terminar com dois irmãos.

Mas Lira não se preocupava com o amanhã. Naquele momento ela se sentia vitoriosa. Aquela vergonha da derrota para a realeza tinha sido deixada de lado e agora a vingança estava finalmente próxima de novo, mais próxima do que nunca.

Ela ficou observando, atentamente, seu maior inimigo indo embora por entre as árvores doentes, já sofrendo os efeitos da Doença do Reino. Somente quando a sombra do mago se misturou com o escuro da floresta é que ela se voltou para seus monstros. Eles a seguiram quando ela parou, na porta da cabana, mas então se virou para o estreito e triste riacho que escorria sozinho atrás da construção, em meio à vegetação.

A terrível bruxa sentou-se na terra batida e envenenada, tocou a água fria e fechou os olhos.

A Escuridão não sabia exatamente o motivo, mas ela gostava de lá.

Era tranquilo, mas perigoso. Era mágico, mas misterioso. O som das folhas umas nas outras, as sombras sinistras que os troncos das árvores carnívoras formavam e os reflexos fantasmagóricos da fraca luz da vela que iluminava a sua casa quando, tremeluzindo, incidia sobre as tranquilas águas do último dos límpidos riachos...

Ah, era realmente o lugar mais lindo que ela já vira em toda a sua vida.

 

Fim

 

Copyright © 2021 de Bryan S. Duarte

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