A lâmina da Espada: um conto da Saga Real de Zerbet
Sinopse: Chase tem apenas 12 anos, quando finalmente descobre o mundo além da cidade Wansfort. Protegida por Sir Howard, mantida em anonimato e acompanhada de seu melhor amigo, George e mais um pequeno batalhão de soldados, Chase conhece o povo do oeste e seu temor pelos Lhoary, a tribo selvagem que um dia ameaçou as terras de Zerbet, mas tudo vira de ponta a cabeça quando a missão aparentemente simples de Sir Howard se torna repentinamente... violenta.
Seria Chase corajosa o suficiente para sobreviver a isso?
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Um trovão retumbou pelos
corredores escuros do palácio real e Deise Elisabeth Chase acordou de
sobressalto, os olhos atentos a qualquer movimento. Porém, não havia nada,
muito embora sua mente ainda não soubesse distinguir aquilo que era real, do
pesadelo do qual tinha acordado.
Era o mesmo todas as
noites agora, repetidas vezes, velhas lembranças de um momento no tempo. Um
momento que a havia marcado tão profundamente quanto a ferida de uma adaga no
coração, e que viria a se tornar parte de quem ela estava destinada a ser,
mesmo ela sendo muito jovem para saber.
A menina de 12 anos,
agora com quase 13, fechou os olhos e respirou fundo como costumava fazer
sempre que algo a atemorizava. Ela deixou com que a sua respiração suavizasse
até que pudesse pensar mais claramente e então, pousou novamente a cabeça no
travesseiro macio.
Uma voz, a de sua mãe,
perpetuava no fundo de sua mente. “Fique aqui... está bem, querida?”, fique
aqui... – eu fiquei, mamãe... – ela sussurrou, baixinho, para si própria. – Se
eu tivesse feito alguma coisa... tolice Chase! Não poderia ter feito nada, e eu
era ainda tão criança.
Ela não havia visto a
cena terrível que sua mãe vivenciara, tampouco entendera de imediato o que
havia acontecido naquela noite fatídica e mal se lembrava do funeral, mas mesmo
assim sempre que sonhava com isso, ela podia se ver ao lado do corpo do rei
Pedro de Zerbet, o rosto fixo em uma expressão eterna, o olhar distante e sem
brilho. Imóvel. A taça de vinho no chão, de onde viera o veneno, maldito veneno
que trouxera ainda mais desgraça a um povo em sofrimento e a uma família mais
do que a qualquer outra. A rainha Vitória nunca mais fora a mesma, e em seu
prolongado luto ela se tornara não mais do que uma sombra da mulher sorridente
que um dia fora.
Chase franziu o cenho e
tentou esvaziar a mente. Estava ainda muito cedo para ela acordar, mas o som
das trovoadas ainda chegava aos seus ouvidos. Ela detestava trovões. Tinha
respeito por eles, mas nunca conseguia prever quando aconteciam, por mais que
tentasse e sempre levava um baita susto quando os raios cruzavam os céus em
noites de tempestade.
Finalmente, depois de
alguns minutos angustiantes, ela começou a pegar no sono, apegada a um único pensamento
entusiasmante: no dia seguinte ela encontraria com George, seu melhor amigo, e
como era de costume entre os dois eles sempre buscavam coisas novas para fazer
no palácio, repleto de corredores e portas do jeito que era, mas dessa vez eles
iriam fazer algo diferente, algo que a vinha animando cada dia que passava
desde o momento quando conseguira a confirmação do pai de George, Sir Howard:
eles iriam deixar Wansfort, pela primeira vez em suas vidas.
Sob supervisão irrestrita
de Howard Staad, fiel amigo da rainha Vitória e líder do Conselho de Lordes,
George e Chase iriam conhecer os mares do oeste, acompanhando o nobre numa
breve missão que requeria sua atenção. Howard era o único a quem Vitória
confiaria a vida de sua filha, mas Chase tinha que admitir o quanto tinha
tentado convencer ele e sua mãe antes de qualquer decisão e o quanto torcera
por aquela notícia.
Mas agora era certo, e ela finalmente teria sua primeira oportunidade de conhecer o povo além da capital, povo que um dia seria de sua responsabilidade. Para outros, talvez esse pensamento lhes tirasse o sono, mas por algum motivo isso a distraiu dos sons assustadores e afastou as lembranças ruins e pela primeira vez em algum tempo, ela pôde dormir de verdade.
Não foram raios de sol
que os receberam quando a porta do palácio se abriu para o esplêndido jardim
que tantas vezes cativara a atenção da jovem Chase. Desta vez, as nuvens ainda
pairavam no ar, teimosas de irem embora, mesmo que a tempestade já houvesse
passado havia horas. Isso, no entanto, não impediu que os dois adolescentes
vissem beleza em cada flor daquele jardim, cada arbusto.
Aquilo era o mundo para
eles... ou melhor, havia sido até aquele momento. Eles já haviam visitado a
cidade além dos portões protegidos, mas nada tão longe como estavam prestes a
fazer. Chase via mais beleza naquele dia, afinal, do que em qualquer outro dia
que podia se lembrar. Já George estava, naquele momento, mais atento aos
soldados que treinavam ao redor da Escola de Armas, que as pessoas costumavam
chamar de academia de guerra, um edifício discreto diante da beleza do palácio
real, mas que formava alguns dos guerreiros mais habilidosos do reino inteiro.
Ele queria ser um deles
um dia, Chase sabia disso... talvez mais do que ninguém. Não haviam números que
pudessem contar as vezes em que suas conversas terminavam em George falando
algo como “eu quero proteger o reino, vou ser um guarda real um dia” ou “quero
ser igual ao meu pai” ou “vou cumprir meu dever de proteger vossa alteza”, esse
último irremediavelmente seguido por Chase lhe fuzilando com o olhar, as
palavras na ponta da língua: “pela última vez George, pare de me chamar de
alteza”.
Ela conhecia o papel dos
guardas reais, sabia a importância deles e da guarda do reino para a proteção
de Zerbet, tinha aprendido sobre isso durante as aulas cansativas no palácio.
Particularmente, não nutria muito interesse na arte da luta, tinham lhe dito
que isso não cabia a uma mulher fazer. Ela deveria estudar diplomacia, ou algo
assim para que pudesse se tornar uma boa rainha um dia, era esse o dever dela
para com o seu povo, seguindo as tradições que sua mãe e sua avó tinham seguido
antes dela. Em alguns anos, ela estaria liderando todo um reino, ao lado de um
marido que ainda não conhecera, era assim que deveria ser. Era assim que havia sido
determinado, antes mesmo dela sequer nascer, muito embora houvesse coisas com
as quais ela não conseguia concordar...
À medida que se
aproximavam dos degraus da carruagem, raios de luz emergiam ruidosos por entre
a escuridão dos céus, até o chão florido e mais além. Chase encarou isso como
um bom presságio e, por um instante, a princesa se esqueceu do que estava
fazendo. Até que George a despertasse com um chamado. – Chase, Chase! Cuidado
com o degrau!
E por um fio, ela se
salvou de tropeçar violentamente. Sir Howard ajudou-a na subida e a acomodou
num dos bancos da carruagem. Vitória antes os observava de longe, mas depois de
quase ver um acidente pôs-se a correr na direção de onde eles se encontravam. Os
demais soldados abriram caminho para a rainha, mas ela se deteve na porta da
carruagem e abriu um leve sorriso ao ver que sua filha estava bem. George se
sentou calmamente ao lado da amiga e fez uma leve reverência à rainha.
- Estou bem, mãe. – Disse
Chase, os pensamentos ainda nas nuvens, imaginando o que estava por vir
naquelas próximas horas. – Não se preocupe, Sir Howard vai estar conosco.
- É, acho bom mesmo... –
As palavras cortantes foram dirigidas diretamente para o lorde, que se ocupava
ajustando as rédeas dos cavalos. Ele, porém, devolveu um simples sorriso
sincero. Vitória continuou, ainda séria. – Eu não sei como concordei com essa
viagem, Marcrof não é o lugar para uma princesa... principalmente agora.
Com a mesma expressão
serena no rosto, Howard se aproximou. Seus cabelos compridos estavam presos em
um rabo de cavalo e as roupas eram um tanto simples para um lorde, nada muito
diferente do que um camponês costumava usar: botas de couro simples, uma calça
e uma túnica feitos de um tecido grosso que lhe seria um tanto útil naquela
época do ano, afinal os mares do oeste tinham a fama de serem os mais frios de
todo o reino, com exceção, talvez, das águas que rodeavam a cidade de
Boundcount, ambos por conta de suas correntezas advindas do Polo Norte. Ademais,
a brisa marítima da cidade de Marcrof, dizia-se, era de gelar os ossos. Eles
estavam no inverno, e embora em Wansfort a estação não fosse muito diferente do
outono, não seria incomum eles encontrarem temperaturas desconfortavelmente
baixas conforme adentrassem em direção ao extremo oeste.
- Não se preocupe com
nada, majestade. Eu tomarei conta da princesa Deise como se fosse minha filha.
“Ele de novo com esse
nome, Deise... não sei porque as pessoas não entendem que eu gosto de ser
chamada de Chase!”, pensou a menina, subitamente aborrecida.
Vitória encarou o lorde e
a filha, parecendo que tinha lido cada palavra de seus pensamentos, mas deu de
ombros em seguida, desviando o olhar dos dois. – Eu não tenho dúvidas disso,
mesmo assim não gosto da ideia.
- Mãe... – Começou Chase,
ansiosa.
- Tudo bem filha! Mas me
mandem cartas assim que chegarem lá. Não quero ficar muito tempo sem ter
notícias de vocês... – Ela hesitou novamente, como se sentisse que iria se
arrepender disso, mas então forçou um sorriso. – Boa viagem.
Momentos depois, o grupo
estava preparado para partir. Chase e George respiraram fundo quando os cavalos
que levavam a carruagem puseram-se em movimento, o som dos cascos no chão
abafando qualquer outro som. O grupo de soldados avançou ao redor deles, em
formação, preparados para qualquer situação e o único que estava com eles
dentro da carruagem era Sir Howard, a orralin pousando em seu colo, muito
embora ele parecesse bastante distraído com a paisagem que via pela pequenina
janela ao seu lado.
Mais cedo naquele dia,
Sir Howard lhes tinha explicado que não era seguro para eles dois cavalgarem ao
lado dos soldados, muito embora Chase imaginasse ser uma experiência bem
divertida. Em vez disso, ele tinha pensado naquela carruagem, que em nada
lembrava alguma usada pela família real e que chamava menos atenção que
qualquer outra disponível para a Academia e para a realeza. Ali, eles estariam
mais protegidos no caso de um ataque, e caso o pior acontecesse, Howard estaria
ali junto com eles para protegê-los, e ninguém, absolutamente ninguém no reino
de Zerbet desconhecia as habilidades em batalha de Sir Howard Staad, um dos
mais lendários guerreiros que já manuseara uma orralin. Somente a presença dele
deveria afugentar qualquer ladrão. Na ocasião ele também se preocupara em
arrumar-lhes vestimentas adequadas para a viagem, de forma que chamassem menos
a atenção, assim como as roupas dos soldados que os escoltariam, que ocultavam
suas verdadeiras ocupações.
Chase lembrava-se das
exatas palavras do lorde: “por mais que muitos ainda tenham apreço pela família
real, é melhor prevenir do que remediar, e chamar o mínimo de atenção
possível”. George havia deixado para trás os tecidos nobres e os sapatos
favoritos e parecia vestir algo muito semelhante ao pai, com exceção de que o
jovem Staad não carregava um cinto, nem uma arma, e sua túnica era levemente
mais escura em tom do que a do outro homem. Já Chase havia prendido os cabelos
em um coque e os escondido por baixo de um pano marrom como o que as moradoras
de Wansfort costumavam usar. Trajava um
vestido combinando e uma bota preta em tamanho menor do que aquela calçada pelo
amigo. Não era algo que ela costumava usar em público, mas não podia negar o
quanto se sentia confortável em vestir algo parecido com o que seu povo
realmente usava.
De fato, ela nunca
gostara muito dos longos e belos vestidos que tinha que usar todos os dias no
palácio e nas festividades... eles eram sim muito bonitos, mas a faziam se
sentir mal ao pensar no motivo de nem todas as pessoas de Zerbet poderem trajar
algo como aquilo. O palácio era sempre cheio de fartura e mesmo naquele
momento, em meio à Doença do Reino, as cozinhas do palácio estavam sempre
recheadas de surpresas deliciosas, da mais saborosa carne até os mais
elaborados doces. Enquanto isso, o povo passava fome. Não seria capaz, no
entanto, de criticar o trabalho que seus pais haviam feito pelo reino até
então. O problema não era o rei ou a rainha. Pedro lutou tanto por uma solução
para a Doença do Reino que ele mesmo quase adoeceu, e se estivesse ainda vivo,
ela tinha certeza de que seria capaz de dar a vida, se fosse necessário, para
que seu povo pudesse ter uma vida digna novamente, mas mesmo assim, haviam
aspectos, alguns intrínsecos demais para serem mudados em tão pouco tempo, mas
que eram tão errados que doíam o coração da jovem princesa de Zerbet. Quão
lindo seria se todos pudessem desfrutar do mesmo que ela sempre desfrutara...
E agora ela estava do
outro lado dos muros, serpenteando numa carruagem pelas estreitas e agitadas
ruas de Wansfort. Não podiam ver muito pela janela, e tinha sido orientada para
tal, afinal se olhasse, outras pessoas do lado de fora poderiam reconhecê-la e
as notícias correm rápido por Zerbet. Logo, todos saberiam que a princesa
estava fora do palácio, e isso poderia pô-la em perigo. Mesmo assim, de
relance, ela conseguia enxergar o comércio de rua, as pessoas que andavam,
carregavam seus burros ou levavam consigo sacolas com as mais variadas coisas.
Conseguia distinguir as ruas secundárias, amontadas de pessoas, algumas com
olhares desesperados, outras pedindo dinheiro, e eram tantas...
“Como eu posso cuidar de
todas elas? Como eu poderia?!” pensou ela e seu coração de súbito disparou. Uma
pessoa só comandando o reino? Isso era possível? Que doido teria tido uma ideia
como aquela?
Ela quis pular da
carruagem, quis correr até seu povo e lhes dizer que ia ficar tudo bem. Mas não
podia mentir para eles, pois nem ela mesma saberia dizer quando a Doença do
Reino teria um fim. Ficou ali então, no mesmo lugar de antes, parada, estática,
no assento do veículo, ouvindo o bater de cascos do lado de fora, os olhos
disparando entre a orralin que Sir Howard tinha preparada para usar contra os
oponentes, caso houvessem, e o rosto de seu mais velho amigo, George.
O menino, por outro lado,
não havia se distraído nem por um segundo. Ele sentia um dever quase sagrado de
proteger a princesa, mesmo que mal soubesse ainda como usar uma arma. Era certo
que no ano seguinte ele tentaria uma vaga para a Escola de Armas, para cumprir
seu sonho como soldado e protetor da realeza, mas a verdade é que Chase o veria
menos, por conta dos treinos, e ela queria um amigo mais do que um soldado.
“Está sendo estúpida, Chase. Ele vai continuar sendo seu amigo”, pensou ela,
mas uma pontada de solidão lhe invadiu os pensamentos. George tinha sido seu
irmão por tanto tempo, o que seria dela se tivesse que assistir as aulas de
etiqueta sozinha, ou brincar no pátio sozinha?
Por fim, ela suspirou.
Eram muitos pensamentos para uma pessoa só e ela simplesmente segurou delicadamente
a mão de George, ficando feliz por ele estar ali. O garoto abriu um sorriso,
pois conhecia ela o suficiente para entender quando a princesa estava nervosa.
- O Oeste deve ser lindo,
não é Chase? – Disse ele baixinho, para que o pai não ouvisse. Howard o
repreendia sempre que o filho não se referia à princesa como “vossa alteza” ou
ao menos como “princesa Deise” como diziam as regras de etiqueta.
Chase, por sua vez, o encarou e riu-se entendendo a intenção do amigo de desviá-la das preocupações. Nada disso, apenas buscou relaxar no assento e imaginar o que a missão reservava para eles. Talvez esse pensamento expulsasse todos os outros, afinal.
Eles haviam deixado
Wansfort fazia horas e a cidade tinha dado lugar a uma floresta em todas as direções.
A trilha que seguiam era somente iluminada pela luz da lua e o comboio avançava
com um ritmo reduzido, com o objetivo de chamar menos a atenção e evitar
acidentes. Em trilhas como aquela, era comum que um cavalo desavisado atingisse
uma pedra solta e quebrasse a perna, o que certamente seria fatal e ninguém ali
estava disposto a arriscar a vida de suas montarias.
Chase havia adormecido,
assim como George, mas Howard permanecia vigilante, a lâmina da espada pronta
para investir contra qualquer inimigo, ao menor sinal de ameaça. Seus olhos
percorriam a escuridão lá fora, enquanto os homens da guarda seguiam igualmente
tensos, pois ladrões eram comuns naquela área, assim como em qualquer bosque de
toda a Zerbet, desde o início da crise no reino.
Em certo momento, ele
pôde distinguir um rosto através da janela da carruagem, parcialmente oculto
pelo tronco de uma velha árvore. Ele mal pôde distinguir a figura, mas sua
mente começou a trabalhar ainda mais depressa, tentando prever o que poderia
acontecer no momento seguinte. Ele desejou que o comboio se afastasse dali o
quanto antes, mas no fundo sabia que não adiantaria muito, pois os salteadores
costumavam conhecer muito bem o terreno onde atacavam e geralmente montavam
cavalos assim como suas vítimas. Assim poderiam aparecer, roubar o que
quisessem e desaparecer em seguida, antes mesmo que os assaltados pudessem
reagir.
Como ele esperava, não
demorou para que ouvisse um barulho do lado de fora da carruagem e de repente,
o veículo parou com um solavanco, como se o cocheiro tivesse sido obrigado a
puxar as rédeas. Ele não esperou para ver o que aconteceria: abriu a porta da
carruagem e saltou para o lado de fora, na escuridão, guardando a única entrada
e, com isso, seu filho e a princesa também.
A primeira coisa que viu
foram os soldados desmontando, as armas na mão, sob a luz prateada da Lua. E
então ele entendeu para onde todos olhavam: bem à frente na trilha havia um
pequeno grupo de homens com roupas de farrapo, e mais outros pareciam surgir em
meio à escuridão do bosque de ambos os lados do caminho, os cercando. Dentre
eles, Howard reconheceu um dos salteadores como o que tinha visto momentos
antes, um sujeito montado em um cavalo de baixa estatura, ao lado de mais três
companheiros montados, todos com espadas e adagas nas mãos, apontando-as
ameaçadoramente para os guardas reais.
Esse mesmo homem olhou de
um lado ao outro e anunciou com uma voz retumbante: “isso é um assalto, não se
movam e ninguém se machuca. Queremos só as riquezas que sabemos que vocês levam”.
Howard franziu o cenho e
levantou uma sobrancelha. – Talvez vocês devessem procurar em outro lugar. –
Começou ele. – Vocês não vão sair daqui vivos se decidirem investir contra nós.
O seu tom de voz era
bastante tranquilo, como se ele já tivesse feito algo assim uma dezena de
vezes. Atrás dele, dentro da carruagem, ele pôde ouvir vozes sonolentas e
imaginou que os dois jovens estavam acordando. “Fiquem dentro da carruagem,
fiquem dentro da carruagem...” ele pensava continuamente, enquanto tentava
manter a atenção dos salteadores nele.
O homem riu-se, com
desprezo, em resposta às suas palavras. – Vocês estão em menor número, não me
importa para que nobre vocês trabalham, ou se é para algum mecenas metido, não
existe uma versão dessa história que termine com vocês ilesos se decidirem nos atacar.
Agora, rapazes...
Com estas palavras, os
demais salteadores avançaram, ameaçadoramente, em direção ao comboio e os
guardas olhavam de relance para o lorde, à procura de instruções, pois fora
Chase, ele era a pessoa de maior autoridade ali. Sua expressão, porém, exibia
uma mensagem clara para cada um dos homens: Aguardem meu sinal.
Quando o primeiro inimigo
chegou perto o suficiente da carruagem para estar ao alcance da lâmina do sabre
que ele carregava, Howard investiu contra ele, e como uma única força, os
demais atacaram os salteadores. Os momentos seguintes foram um turbilhão de
luta e o som das armas ecoou na floresta.
E Howard não mentira
quando dissera o quanto os salteadores estavam correndo perigo em atacar o
comboio, pois os guardas reais eram os homens mais bem treinados do reino na
luta de espadas e os inimigos feridos corriam aos montes em direção às árvores,
em pânico diante da ferocidade dos adversários.
Mas de todos eles, Howard
era o que mais assustava. Sua arma girava como um redemoinho da morte,
derrubando todo e qualquer inimigo que ousasse chegar perto da carruagem. Seus
golpes eram tão precisos que nenhum deles chegou a ferir uma única montaria dos
inimigos, somente seus cavaleiros oportunistas.
Por trás da porta, George
e Chase olhavam escondidos a cena, fascinados pelas habilidades de Howard. Eles
já haviam presenciado o homem treinando, mas nunca o haviam visto em ação.
Quando os últimos salteadores correram capengando para entre as árvores, Howard
voltou-se para eles, preocupado, sem nenhum arranhão sequer. – Vocês estão bem?
Os dois assentiram,
assustados. Só então ele respirou fundo, pediu a um dos guardas que tomasse
conta dos jovens e foi ver como os demais oficiais estavam. Felizmente, não
havia muitos feridos, apenas um rapaz com um corte num dos braços e outro com
arranhões superficiais. Em questão de minutos, eles estavam sendo tratados
pelos médicos da equipe e então, se preparavam para retomar a cavalgada.
Não havia corpos no chão
da floresta, uma vez que os guardas estavam dispostos apenas a afugentar o
grupo de salteadores, mas pequenas gotas de sangue manchavam o solo, deixando
evidente a qualquer um que passasse por ali que aquele lugar tinha sido palco
de uma luta. Howard não viu a hora de ir embora daquele bosque. O quanto antes
chegassem na cidade de Marcrof, melhor seria para eles. Aquelas árvores
costumavam ser palco de muitas emboscadas e assim como minutos antes, eles
poderiam vir a ter problemas com outras gangues novamente.
A carruagem percorreu a
trilha levemente apressada, cercada de perto pela escolta, mas desta vez, não
importava o quão tarde era, nem Chase nem George adormeceram até o momento em
que os troncos e galhos escuros ficaram para trás, dando lugar a uma planície
assolada pelo vento congelante do mar. A princesa e seu melhor amigo respiraram
fundo e puderam sentir o cheiro do oceano, o sal no ar... mas o ar era tão frio
que Chase sentiu um calafrio no primeiro momento em que a forte brisa atingiu
seu rosto, vindo das frestas da porta. Howard abriu sua sacola de viagem, que
carregava ao lado no assento, tirou dois longos casacos e os entregou para os
jovens, que se encolheram como podiam. Em poucos minutos, logo antes do céu finalmente
começar a clarear, eles fecharam os olhos e adormeceram novamente, mas Howard
não se deu ao luxo de fazê-lo, pois sabia que não havia um momento de noite
naqueles tempos que podiam ser considerados seguros, não importando onde no
reino. As pessoas estavam desesperadas, algumas tinham sucumbido à praga, e
outras tinham desistido da moralidade para sempre.
A carruagem atravessou
uma estrada extremamente movimentada, tão ou mais tumultuada que Wansfort.
Chase e George olhavam pela janela, curiosos, mas também discretos, enquanto do
outro lado centenas de pessoas vendiam frutas, bugigangas, tapetes, carnes,
verduras e tudo mais que se podia imaginar. Diversas pessoas abriam caminho por
meio da multidão em todas as direções, outras paravam nas barracas para comprar
coisas ou tentar ganhar dinheiro com alguns dos jogos mais estranhos possíveis.
Havia homens, mulheres, crianças, e muitos deles desviavam o olhar do que
estavam fazendo em direção ao grupo recém-chegado, mas não demoraram muito a
perder o interesse. Em seus pensamentos, Chase imaginou que os moradores de
Marcrof deviam estar acostumados com carruagens, pois lá moravam alguns dos
maiores mecenas de Zerbet, e isso certamente seria de grande vantagem para
eles, pois não iriam chamar muita a atenção, e tudo que eles não queriam era
atenção, afinal Chase e George estavam lá anônimos e Howard não gostava de
curiosos em suas missões pelo reino.
- Mantenham a cabeça
abaixada. – Sussurrou Howard para os dois. – Mais tarde nós poderemos visitar a
cidade se vocês quiserem, desde que usem os mantos que estão levando para
cobrir seus rostos, mas antes eu preciso cuidar de uma coisa.
O coração de Chase batia
depressa quando a carruagem estacionou, próxima do estábulo de uma estalagem
afastada do centro comercial, no topo de uma colina. Howard abriu a porta e
deixou que o vento cortante os atingisse os rostos, mas a princesa não parecia
mais se importar, porque seus olhos pousavam no azul do oceano bem à sua
frente.
- Fiquem aqui até eu
voltar, ok? – Instruiu o lorde, se afastando para conversar com o dono da
estalagem, enquanto os guardas reais disfarçados desmontavam de seus cavalos, e
mesmo assim não demorou para que a jovem pisasse os degraus da carruagem, quase
que hipnotizada pela paisagem.
George olhou, sem
acreditar, a amiga se afastando e entrou em desespero. – Chase... Chase! Não
ouviu o que o meu pai disse? – Disse ele, o mais baixo que pôde para que a
princesa pudesse escutar.
Chase, por sua vez, se
mantinha oculta pelo veículo, observando atentamente o momento em que todos os
guardas reais estariam distraídos... agora!
Ela correu
disfarçadamente na direção do que a encantava quando os guardas foram conversar
com os cuidadores. George olhou incrédulo a menina se afastar, sem ao menos ser
percebida pelos homens que juraram protegê-la. Internamente, porém, ele sorriu.
“Ela já deve estar acostumada a fazer isso, imagino eu”. Revirou os olhos e
correu em seu encalço. No entanto, não teve a mesma sorte que Chase e um dos
guardas acabou por vê-lo se afastando, e por consequência, também viu Chase.
George a alcançou bem no
momento que logo atrás um dos soldados gritava seus nomes, mas naquele momento
aquilo era muito distante, muito sem importância.
Eles nunca tinham visto o
mar antes. Obviamente tinham ouvido histórias, conhecido belíssimas imagens do
mar em livros de iluminuras da biblioteca do palácio, mas em comparação com a
verdadeira paisagem, cada desenho que os dois um dia haviam apreciado parecia
pálido e superficial. Não que as iluminuras fossem feias, elas eram
maravilhosas, mas simplesmente não podiam se comparar com a realidade.
Bem à frente dos dois, a
colina descia levemente e então de forma mais íngreme, onde a grama perdia
lugar para a rocha nua. O penhasco descia dezenas de metros até uma faixa de
areia estreita que era gentilmente banhada por águas tranquilas de cor
esmeralda. O brilho do sol parecia ecoar nos reflexos das preguiçosas ondas.
Ainda era manhã e a luminosidade era agradável, combinava com o vento frio, e
apesar das temperaturas baixas eles se sentiam bem, havia algo como que mágico
naquele lugar, tão belo que aqueceu o coração dos dois naqueles poucos instantes.
Até que o guarda
finalmente os alcançou. O rapaz parecia cansado, devia ter corrido exaltado na
direção deles, afinal eram dois adolescentes perigosamente perto de um
penhasco... – Senhor George, alteza Deise... por favor, venham comigo... é perigoso
vocês estarem do lado de fora sem supervisão.
George se deixou levar,
mas Chase ainda desviava seus olhos para a praia lá embaixo e para o agradável
e congelante mar do Oeste. Ela continuou fazendo isso, mesmo de dentro da
carruagem novamente, por muito tempo, até que Howard finalmente retornou e
buscou as bagagens, com um sorriso no rosto. Dessa vez havia guardas reais na
entrada do veículo para prevenir que Chase fizesse alguma outra besteira. –
Podemos entrar, já negociei o preço para os próximos dias. Dizem que essa
estalagem é a melhor da região. Não é um palácio, mas vocês vão descobrir que
nada é como o palácio aqui fora, principalmente agora... – Ele disse essas
últimas palavras com pesar, de tal forma que seu sorriso vacilou por alguns
segundos, mas tão logo se recuperou, pediu que os guardas o ajudassem a
carregar a bagagem e então deixaram a carruagem.
- Esse lugar é
fantástico! – Disse Chase pela décima vez, enquanto puxava George por entre a
multidão.
Ela nunca se sentira tão
viva antes. As pessoas passavam por ela, sem ao menos a reparar e ela sentia-se
agradecida por isso. Sem privilégios afinal, ela poderia passear por entre seu
povo sem que eles se ajoelhassem... ufa! Por baixo do capuz que ocultava seu
rosto, abria-se um sorriso de orelha a orelha.
Mas eles não estavam
desprotegidos, Howard havia prometido proteção à princesa e ele mesmo jamais
deixaria seu próprio filho sozinho naquele lugar, por isso ele vigiava por
perto, seu olhar pousado constantemente nas duas pequenas figuras. Mais dois
guardas os acompanhavam, um tão perto deles que tornava quase óbvio que estava
tomando conta dos dois jovens, mas não era algo incomum afinal. Em lugares
muito movimentados como aqueles, as crianças e mesmo alguns jovens seguiam
normalmente com um adulto responsável para cuidar deles e guiar suas decisões.
Era fácil se perder e ainda mais fácil se encantar com os jogos e acabar
devendo dinheiro para algum vigarista.
Mas Chase lidava com a
situação com empolgação, ainda mais que George, e os dois iam de barraca em
barraca, só para ver o que os outros vendiam e ouvir as vozes das feiras. Uma
gentil moça de uma barraca de frutas virou-se para os dois e abriu um sorriso
com os dentes a mostra, apontando para as lindas maçãs que ela deixava à mostra
para venda e, também, os fartos cachos de uva repletos das deliciosas frutas
roxas. Chase suspirou somente de vê-los e todas as outras.
- Estou vendo que gostam
de frutas! – Disse a moça, bem-humorada. Então virou-se para a barraca, pegou duas
unidades do que parecia a maior ameixa que Chase e George já haviam visto e as
entregou. – Vamos, comam! É de graça, por conta da casa.
Chase hesitou, mas pegou
a bela fruta das mãos da senhora e a mordeu com vontade. O suco lhe sujou os
lábios de vermelho, mas ela não se importou. Estava deliciosa. George fez o
mesmo e suspirou de felicidade. Era fresca e mais doce do que qualquer ameixa
que eles jamais haviam comido.
A moça, parecendo ler
seus pensamentos, riu-se. – Elas são bastante especiais. Colho da minha
plantação aqui em Marcrof, são cultivadas com bastante carinho e felizmente
ainda não as perdi por conta da Doença do Reino, muito embora eu tenha alguns
colegas da feira que estão passando dificuldades e... vocês não são daqui, são?
– Indagou, tentando enxergar por trás dos capuzes. – Nunca os vi antes. Onde
estão seus pais?
Antes que qualquer um dos
dois pudesse responder, Howard surgiu na multidão. Ele sabia se manter
discreto, mas prestava atenção em cada passo que os dois amigos faziam, não
importando qual fosse. Apertando a mão da vendedora, o lorde se pôs entre seus
protegidos e ela. Ele não usava um manto como os dois adolescentes para
esconder sua identidade, mas havia amarrado o cabelo e deixado a barba crescer
e isso era o suficiente para esconder sua identidade da grande maioria das
pessoas. – Olá, me chamo Gulliver, desculpe-me se minhas crianças te causaram
algum transtorno, se precisar pagarei o que for necessário.
A moça olhou para ele com
simpatia, mas balançou a cabeça negativamente. – Não é necessário, senhor.
Essas foram por conta da casa. Se me permitem... – Ela se aproximou um pouco
dos três, e abaixou a voz até quase um sussurro, que mal pôde ser ouvido em
meio ao barulho da multidão ao redor. – Vocês parecem ser pessoas simpáticas,
tomem cuidado por aí, existem pessoas em Marcrof que sabem se aproveitar de
viajantes. Não confiem.
George sentiu um calafrio
e olhou ao redor desconfiado. Pareceu que só naquele momento ele se deu conta
do perigo latente que pairava sobre eles ao seguirem por entre tantas pessoas.
Chase sentiu o mesmo. De repente era como se mil olhos estivessem virados para
eles, olhos ocultos dentre tantas pessoas, em todas as direções. Olhos à
espreita, aguardando pela oportunidade ideal para atacar os viajantes
desprevenidos.
Mas Howard não pareceu
sentir-se mal com as palavras da vendedora. Ou se sentiu algo, não aparentou,
no lugar da preocupação seu rosto exibiu um sorriso de agradecimento. –
Obrigado pelo aviso, ficaremos atentos. – E então ele se despediu,
cordialmente, da moça, e guiou os dois jovens para longe. Quando se dirigiu
para os dois, sua voz era séria. – Não se afastem muito, ela tem razão. Existem
salteadores e vigaristas em feiras como essas, não devia ter trazido vocês
aqui.
Dessa vez, eles não
contestaram as palavras do lorde. Mesmo ao longe, quando já haviam se afastado
do núcleo de movimentação, eles ainda podiam sentir os pelos das nucas se
arrepiarem com a sensação de ainda estarem sendo observados...
Naquela noite, na
estalagem, eles se deliciaram com os guteau permecets da pequena taverna
em seu anexo. Os guardas disfarçados ocupavam a maior parte das mesas, mas
conversavam baixo, para que nenhum funcionário pudesse captar informação que
não devesse. Alguns outros clientes, no entanto, insistiam em falar tão alto
que Chase mal conseguia ouvir os próprios pensamentos. As risadas eram
exageradas, resultado do álcool, ela imaginava. O bom daquilo era que ninguém
realmente prestava muita atenção nos novos e numerosos hóspedes, uma vez que a
bebida entorpecia seus pensamentos. Provavelmente, muitos deles nem tinham se
dado conta de Chase, George e os outros. Uma palavra, no entanto, insistia em
perdurar em cada final de frase dos mais embriagados: Lhoary.
“Então os pesqueiros foram
arrastados pela tempestade, até muito perto daquelas pedras, na Praia da Morte,
e os Lhoary estavam lá, esperando por eles...” disse um, quase gritando. Outro
riu-se, um tanto alterado: “E como você sabe disso? Porque se eles encontraram
com os Lhoary, eles não viveram para contar a história”.
O primeiro, que narrava
os acontecimentos, estava com o rosto vermelho e Chase não sabia se era de
irritação pelas palavras do companheiro ou se era por conta do excesso de
vinho. Provavelmente, eram os dois.
“Alguns conseguiram pegar
um bote e chegaram à costa!”, exclamou ele e outro homem, em uma mesa mais
afastada, protestou: “Mentira! Como nunca ouvi falar disso?”.
A conversa continuou até
depois que o grupo de Wansfort deixasse o aposento para dormir, mas a palavra Lhoary
persistia nos pensamentos da princesa. Não que ela nunca tivesse ouvido sobre
eles, havia livros inteiros sobre aquele povo antigo na biblioteca do palácio,
mas ela acreditava que eles tinham sido extintos depois do fim da Era das
Trevas.
A imagem aterradora de um
Lhoary era, definitivamente, a pior que poderia permear os pesadelos dos
pescadores de Marcrof, e de fato tinham sido eles os mais prejudicados pelos
ataques incessantes daqueles inimigos cruéis em épocas tão distantes. Sua pele verde
musgo era perfeita para caçar, dizia-se que um Lhoary poderia ficar imóvel por
dias no mesmo lugar na vegetação, de tal forma que se tornava impossível
percebê-lo até ser tarde demais. Hordas dessas criaturas haviam invadido o
oeste de Zerbet durante os momentos sombrios que cessaram no final do reinado
de seu avô, mas as marcas daquela época cruel haviam perpetuado na história, e
pelo visto, os Lhoary não faziam somente parte da história, mas ainda
aterrorizavam os que tinham o azar de se aproximar de sua ilha.
Ao se deitar naquela
noite, seu sono se recusava a chegar, o medo dos Lhoary permeava seus
pensamentos, acrescido da ameaça constante dos salteadores e, bem no fundo, ela
começava a se arrepender de ter insistido em ir naquela missão. Mas então ela
riu de si mesma, incrédula. – Você, Chase, se arrependendo de algo como isso?
Não... onde está seu espírito de aventura???
No entanto, ela ainda se
manteve acordada, os medos à espreita, prontos para invadirem seus pesadelos
recorrentes.
Somente mais um dia, mais
um dia e eles estariam a caminho de Wansfort novamente. De repente Marcrof não
parecia um lugar tão simpático quanto ela pensara de início, e embora ela
tivesse adorado estar em um lugar tão longe do palácio, rodeada de seu povo, um
pressentimento ruim lhe perseguia sem cessar, mesmo ela não tendo certeza do
que era.
George, no entanto, ainda
parecia bastante disposto a passar alguns dias na cidade porto. – Meu pai vai
visitar Angus Fergursan essa manhã, ele espera que estejamos de volta à capital
amanhã já, bem cedo, com o problema resolvido, seja ele qual for... – Disse o
amigo, enquanto desciam a escada, seguidos de perto por três guardas reais.
Chase não respondeu,
apenas assentiu. Eles dois não tinham detalhes sobre a missão de Sir Howard,
somente sabiam que tinha relação com aquele tal de Angus Fergursan, o
governador da cidade de Marcrof. No dia anterior, ela soubera que dois guardas
haviam, a pedido de Howard, feito a pequena viagem até a casa do homem, para
notificá-lo da presença do lorde, pois era de praxe que um nobre em missão
fosse anunciado o quão cedo possível, quando se tratava de uma situação
relacionada com algum assunto que deveria ser tratado com o responsável pelas
cidades, ou mesmo pelos condados. Internamente, ela torcia para que tudo
corresse como planejado, mas ainda assim, aquela sensação persistia, como se
algo estivesse para dar errado.
Eles desceram até o
térreo e se dirigiram à taverna para tomar um café da manhã, depois George
pretendia visitar o porto e Chase não queria desanimá-lo ao dizer que não iria
com ele, então não pôde recusar o convite, mas quando eles se levantaram da
mesa e atravessaram a porta para o ar livre, Howard os esperava, de braços
cruzados, enquanto os demais guardas montavam em seus cavalos depressa.
George abaixou a cabeça,
pesaroso. – O senhor quer que a gente vá com você.
Howard assentiu devagar.
– Sim filho, eu acho melhor que vocês fiquem perto de mim, Marcrof está mais
perigosa do que nunca, agora a pouco, me veio ao conhecimento que dois homens
foram presos na cidade por incitarem uma briga e, pelo que eu tenho ouvido por
aí, essas coisas estão ficando cada vez mais frequentes.
- Mas eu e a Chase...
quer dizer... eu e a alteza real iríamos até o porto, ver os navios, os guardas
iriam conosco. Não estaríamos em perigo... – Seu olhar era quase suplicante e
Chase entendia plenamente o amigo. George nunca tinha visto um navio de
verdade, muito embora tivesse, desde pequeno, um barquinho de madeira que, ela
lembrava, o menino levava para todo lugar. Agora ele já não brincava com barcos
de madeira, mas a curiosidade persistia e ela mesma nunca tinha visto um antes,
de verdade.
- George eu... eu acho
que concordo com seu pai. Com ele e um grupo de guardas, vai ser mais seguro
para nós. – Disse ela, devagar, medindo as palavras.
Até Howard olhou para
ela, surpreso. Não era muito comum que Chase concordasse com o que as pessoas
diziam, ela gostava de criar sua própria opinião sobre as coisas. No entanto,
algo dentro dela parecia repentinamente querer acompanhar Sir Howard naquela
visita ao tal do Fergursan, muito embora ela não conseguisse explicar, por mais
que quisesse.
Acima de tudo, além de
sua rebeldia, Chase era uma garota que costumava seguir os próprios instintos,
mesmo que isso significasse perder a oportunidade de conhecer mais do Oeste.
George encarou Chase mais
uma vez, de relance, e então, assentiu devagar. – Vamos com o senhor, pai.
A carruagem parou no topo
de uma outra colina, a poucos quilômetros da cidade de Marcrof. A viagem não
tinha sido longa, mas tinha sido silenciosa, pois Howard estava pensativo com
algo e George não parecia muito à vontade perdendo a oportunidade de conhecer o
cais.
Além disso, ele evitava
virar seu olhar para a amiga, claramente o jovem estava um tanto ressentido por
ela ter aceitado o pedido do pai e George sabia muito bem como demonstrar seus
sentimentos, Chase o conhecia o suficiente para saber isso. Ela também conhecia
a volatilidade desses sentimentos e não tinha dúvidas de que essa situação não
demoraria 30 minutos para desaparecer por completo, porque o amigo nunca se
mantinha irritado por muito tempo com alguém. Então, simplesmente, decidiu
respeitar sua opinião e deixá-lo com seus pensamentos, o que tornou a viagem
curta um tanto monótona demais...
Mas finalmente eles
haviam alcançado seu destino e diante deles, no topo da colina, se erguia uma
imensa mansão. As paredes eram brancas e brilhavam com a luz do sol, como o
mais límpido dos mármores e as incontáveis janelas lembravam a Chase grandes e
vigilantes olhos. Dois imensos e elaborados pilares pareciam sustentar a parte
principal da fachada e entre eles havia uma porta de madeira de dois metros de
altura entreaberta e do lado de fora, esperavam dois sujeitos de índole
duvidosa: o primeiro tinha a cabeça raspada e braços musculosos, como os
remadores do porto que Chase vira uma vez ou outra dentre a multidão do centro
de Marcrof, mas diferentemente deles, seu rosto parecia exibir tamanha
animosidade para os recém-chegados que a princesa sentiu um calafrio só de
olhar para seus olhos, pela janela da carruagem.
Já o segundo, ao seu
lado, embora não fosse forte como ele, possuía seu jeito de se mostrar ainda
mais assustador... era um homem alto, quase tão alto quanto a porta de entrada
da casa, vestindo uma roupa de gala branca como a pedra da qual tinha sido
feita a mansão e que Chase agora reconhecia como sendo mesmo mármore. Os
sapatos de couro estavam recém limpos, e o cabelo comprido, preso em um rabo de
cavalo, tinha um corte quase perfeito. Chase o observou atentamente e teve
certeza de que se tratava do governador de Marcrof, o homem que havia sido
motivo suficiente para trazer Sir Howard Staad, o líder do conselho de lordes e
provavelmente o homem mais influente do reino para aquela parte do condado, tão
longe da capital. A princesa, de imediato, imaginou não pela primeira vez, que
motivo seria grande o suficiente para causar aquela missão... Sem dúvida
Fergursan se vestia como um rei, ou como achava que um rei se vestiria,
denotando seu status social a quem quer que olhasse. O corpo era magro e cabia
perfeitamente nas roupas, as mãos estavam repletas de anéis com pedras
preciosas e no braço havia um bracelete de ouro tão brilhante que ofuscava a
visão daqueles que olhavam diretamente para ele. O rosto era sereno, como se
ele não tivesse com o que se preocupar, mas o olhar... Desde muito cedo, Chase
aprendera a ler gestos e decifrar olhares, era como um talento natural para ela
que Vitória insistia em dizer que seria uma poderosa ferramenta para a princesa
no futuro, quando tivesse que assumir o título da mãe. Aquele homem, porém, não
exibia nada no olhar, absolutamente nada, como se tivesse treinado
incessantemente para não demonstrar seus verdadeiros sentimentos.
E um homem que
conseguiria fazer isso, era potencialmente muito mais perigoso do que um
simples sujeito musculoso e mal encarado.
Howard se virou
lentamente para George e Chase, enquanto se preparava para sair da carruagem.
Seus lábios pronunciavam palavras para os jovens, enquanto seu olhar pousava continuamente
nos dois homens próximos da porta, a alguns metros deles. Chase podia ouvir os
guardas desmontando de seus cavalos e pôde imaginar que, assim como o lorde,
nenhum deles confiava realmente naqueles sujeitos.
- Fiquem na carruagem, a
qualquer custo, ouviram? Esperem eu retornar, é melhor que Fergursan não saiba
que a princesa e o filho de um lorde estão aqui comigo. Escondam-se e não falem
nada em voz alta enquanto eu estiver fora. Alguns dos nossos guardas vão
aguardar do lado de fora para protegê-los, de qualquer forma.
- Mas e se o senhor
precisar de ajuda? – Perguntou George, franzindo o cenho e virando-se para o
rosto sem expressão do homem alto que aguardava a presença do lorde.
Howard abriu um sorriso
tranquilizador para os dois. – Terei os guardas reais prontos para agir ao meu
sinal. Nada vai dar errado. Seremos diplomáticos, Fergursan não teria coragem
de enfrentar a coroa e agora que eu descobri sua farsa... bom, fiquem
tranquilos, tudo bem?
Chase nada disse, apenas
retribuiu o sorriso do homem e assentiu depressa. George acabou também por
desistir e deixou que seu pai se afastasse da carruagem e fosse de encontro à
mansão.
- Ele vai ficar bem. –
Sussurrou a princesa, mais para convencer a si mesma do que a George. “Espero”.
Howard mantinha o rosto
neutro, como tinha sido treinado para fazer durante uma reunião diplomática,
mas seu coração batia depressa no peito quando encontrou Fergursan e seu
comparsa mal encarado, Ilius Baltran. Ele conhecia muito bem a reputação de
Baltran, assim como a de seus aliados, os homens que, Howard sabia muito bem,
estavam à espreita, esperando ordens sinistras de seu líder para atacar.
Suas mãos suavam quando o
rosto de Fergursan expôs um leve sorriso confiante, seguido de uma breve
reverência. – É uma honra recebê-lo Sir Howard, embora ainda não esteja muito
claro o motivo da sua visita. Vejo que trouxe muitos soldados consigo, receio
que não seja necessário. As terras de Marcrof estão mais seguras a cada dia, os
salteadores sem dúvida não estão conseguindo lidar com minhas tropas.
Howard retribuiu o
sorriso. – São protocolos seguidos à risca em todas as viagens diplomáticas, e
acreditei necessário. – “E continuo acreditando”, pensou ele, olhando de
relance para Ilius. Como Fergursan poderia ser tão mentiroso a ponto de indicar
a ele que Marcrof está segura, graças a ele? Mentalmente, ele desejou poder
prendê-lo ali mesmo, embora ele soubesse que não deveria, ainda. Com o rosto
ainda exibindo um sorriso, ele continuou mantendo o tom de voz. – Você e eu
sabemos que a segurança de Marcrof não é de responsabilidade dos governadores
de suas cidades, mas de meu velho amigo, lorde Ronan. Ele lhe pediu ajuda com a
proteção das estradas do condado? Pois não vi nenhum dos seus soldados no
caminho para cá? Pelo contrário, fomos abordados por salteadores.
Fergursan indicou que o
acompanhasse enquanto entrava rapidamente no casarão. Howard o seguiu com
cautela, sentindo a presença de Ilius alguns passos atrás dele. O governador
replicou, com calma e um leve tom arrogante em cada palavra. – E o senhor sabe
muito bem que Ronan já não pode cuidar de seu condado há muitos anos. Os outros
governadores estão ficando apreensivos e um tanto irritados com o lorde. Eu, é
claro, estive sempre ao lado dele, como é meu dever, mas receio que seja só uma
questão de tempo para... – Ele parou de falar e virou rapidamente o rosto na
direção do lorde.
- Uma questão de tempo
para o que, governador? Posso saber?
- Você sabe... para que
os outros se revoltem. Eu tentei persuadi-los a desistir da ideia, mas acredito
que não reste muito tempo para Sir Ronan no cargo.
Howard sentiu um
calafrio. Ele conseguia sentir o desprezo que Fergursan deixava escapar sempre
que dizia o nome do lorde de Marcrof. “Sem dúvidas, se existe uma revolta
iminente, ele é o principal responsável por incitá-la, ao contrário do que ele
diz”, pensou o lorde, sentindo o olhar frio de Ilius fixamente nele. Resistindo
a olhar para trás, continuou calmamente. – Se realmente existe essa pretensão
de revolta, é responsabilidade sua reportar à coroa e ao conselho de lordes, já
que é claramente aliado de Ronan. Mas sua informação foi anotada e eu cuidarei
para que isso não aconteça. Quanto à minha visita, saiba que é um assunto que
vim tratar pessoalmente pois senti que precisava olhar com meus próprios olhos,
e o que eu descobri neste tempo no condado só confirmou o que me tinha sido
informado.
O governador olhou para
ele, por um instante, interessado e em seguida, deu de ombros, conduzindo-o por
uma grande sala de estar até um corredor largo e, então a uma porta
cuidadosamente entalhada com desenhos de folhas, árvores e soldados, com o brasão
real ao lado do símbolo do condado de Marcrof. Fergursan acenou para a maçaneta
e indicou que Howard entrasse.
O lorde adentrou o
aposento frio e olhou ao redor, em busca de sinais ocultos de ameaça, mas não
havia nenhum. A pequena sala tinha as paredes e o teto pintados de marrom
claro, o que deixava a mesa de mogno no seu centro quase invisível à primeira
vista. Ao redor da mesa havia seis cadeiras da mesma cor e nas duas paredes
mais estreitas estavam armários repletos de prateleiras com livros empoeirados
que Howard tinha certeza de que Fergursan nunca tinha lido na vida.
O governador se sentou ao
lado de Ilius e indicou ao recém chegado que se sentasse também. – Aqui podemos
conversar sem que os empregados ouçam, tenho certeza de que é um assunto muito
sério que merece um certo nível de discrição.
Howard assentiu devagar,
avaliando a situação: dois adversários em um aposento apertado, longe o
suficiente da entrada para que os seus soldados o ouvissem caso fosse atacado
de surpresa. Não era uma situação muito favorável e ele imaginava que tinha
sido esse o objetivo. O governador imaginava que poderia silenciar Howard de
uma vez se ele tivesse realmente descoberto o que ele estava tramando. O nobre
fechou os olhos, lembrando-se da conversa que tinha tido com a rainha, no dia
anterior à viagem:
“Mas, majestade... ele é
um criminoso, deveríamos prendê-lo e levá-lo de Marcrof antes que o sujeito
cause mais danos.”
“Howard, eu entendo seu
ponto de vista, mas não podemos prendê-lo sem provas reais e por enquanto só temos
indícios e rumores. Você precisa fazê-lo falar, e não existe ninguém melhor
para este trabalho do que você.”
E ele sabia que cada uma
das palavras da rainha Vitória estava repleta de razão. Nem mesmo a palavra do
povo poderia ser o suficiente se não houvesse provas das alegações. Ele também
sabia que a diplomacia era a chave para convencer Fergursan a condenar a si
mesmo.
Assim, ele permaneceria
neutro, esperando a hora certa. Ela iria chegar, se ele fizesse as perguntas
certas. E se ele não morresse no processo.
- E então, Sir Howard?
O lorde piscou, afastando
os pensamentos, tendo plena consciência de sua espada presa na cintura e da
lâmina inimiga, embainhada no cinturão de ferro de Ilius.
- Em Wansfort ouvimos
boatos de impostos abusivos na cidade de Marcrof e redondezas. De início, não
imaginávamos que poderia ser verdade, mas os boatos eram numerosos demais para
que ignorássemos.
O governador ouvia tudo
com especial atenção, parecendo totalmente surpreso com a notícia. Howard
continuou a falar, ignorando o cinismo de seu anfitrião. – Decidi vir para cá
eu mesmo, em busca de evidências sobre isso e realmente, depois de conversar
com algumas pessoas na estalagem onde ficamos hospedados, levantei depoimentos
o suficiente para demonstrar que os impostos gradualmente aumentaram nos
últimos quatro anos neste condado, e agora são mais do que o dobro do
inicialmente estipulado. Outra coisa estranha, governador, é que não há
registro de repasse deste dinheiro para os cofres da capital, estranho, não é
mesmo?
Fergursan pigarreou.
Ilius piscou, olhou para seu patrão e então, de volta para Howard, que
internamente sorria. “Estou conseguindo fazer com que fiquem preocupados”.
- Realmente muito
estranho... mas posso garantir que esse
dinheiro não tem sido recolhido pelo meu pessoal, jamais iria reter dinheiro
dos impostos da população, nem mesmo nenhum dos meus soldados, que tipo de
pessoa mal caráter iria fazer uma coisa dessas? – O governador parecia chocado,
mas a máscara de surpresa escondia o medo que ele agora transparecia, mesmo
depois de ter treinado tanto tempo para esconder suas emoções de olhos alheios.
– O senhor possui tantas evidências assim? Consegue imaginar quem é o
responsável?
- O povo diz que é você.
– Disse Howard, finalmente, dando de ombros. – O que me diz disso?
- Certamente, não fui eu,
disso você pode ter certeza. Eu jamais mentiria para você ou para a coroa, mas
talvez alguém esteja querendo se fazer passar por mim para receber impostos do
povo desesperado e com fome!
- Imagino que seja
realmente uma pessoa terrível.
- Realmente! Certamente!
Seguiu-se um longo
silêncio, até que Howard Staad, retomasse a conversa, suspirando profundamente,
como que desapontado com algo ou alguém. – Eu realmente esperava que você
estivesse por trás disso, mas acho que tem razão, alguém mais deve estar se
aproveitando dos impostos para lucrar com a desgraça alheia.
Fergursan abriu um sorriso
torto, se esticando na cadeira de madeira. – Imagino que sim, o senhor gostaria
de poder voltar para a capital com um prisioneiro para resolver essa situação,
não é mesmo? Mas não precisa se preocupar, pois vou redobrar a vigilância na
cidade em busca desses farsantes, logo os capturaremos e enviaremos para as
celas de Wansfort.
- Sim, realmente uma
pena. Estava para fazer uma verdadeira proposta para o autor desses crimes,
infelizmente, como não o achei, terei que retornar para a capital em breve e somente
sinto pena por ele, seja lá quem for, porque aqueles que vierem no meu lugar
serão muito menos complacentes do que eu, e menos dispostos a colaborar. –
Howard levantou-se devagar, com o rosto sombrio e se afastou da mesa, em
direção à porta. – Obrigado por me receberem, eu sei o caminho de volta para o
salão principal.
Ele já ia girando a
maçaneta quando Fergursan foi ao seu encontro, com um olhar cauteloso. – Mas,
senhor, tão cedo? Nem servimos o almoço ainda. Sem dúvidas você e seus soldados
são muito bem vindos...
- Sim, claro, mas já
vamos indo.
Antes que ele
prosseguisse, o governador segurou seu braço, e falou baixo, de forma que se
tornou impossível ouvir qualquer coisa, mesmo do outro lado do aposento, quiçá
do outro lado da porta, caso houvesse algum empregado fofoqueiro por perto. – E
se eu dissesse que eu sei quem é o responsável por isso?
- Bom, eu certamente
ficaria muito feliz. Acho que a proposta que tenho para dar vai ser benéfica
para ambos os lados.
- Pois bem... o que o
senhor pretende propor a ele?
Howard disse, rindo-se. –
Isso, meu caro, eu terei de informar somente a ele.
- Sou eu.
- Você o quê?
- Não existe farsante, eu
mesmo me certifiquei de aumentar os impostos. – Ele olhou ao redor, para as
paredes do quarto apertado, orgulhoso. Ilius o encarou, preocupado, mas o
governador não lhe deu atenção. – Não há nenhum mal em receber alguma
compensação significativa desse povo por meus serviços, afinal do percentual
que é mantido para manutenção das cidades, não é muito que me resta.
- É mais do que o
suficiente para manter as tropas dos governadores em pleno funcionamento, e
garantir a manutenção das operações conjuntas com o lorde de Marcrof, disso
você pode ter certeza. – Replicou, Howard, cerrando os punhos.
- Você está me acusando
agora?? Pensei que estaria do meu lado.
Seguiu-se um momento de
silêncio, mas Howard respirou fundo devagar. – Tem razão, perdão. Me ocorre que
não são muitos aqueles que tem conhecimento sobre essa sua... atividade. E isso
poderá continuar assim, se descobrirmos um modo de colaborarmos.
Fergursan estreitou os
olhos, enquanto eles voltavam a se sentar. – Prossiga, por favor.
- Bom, você sabe o quanto
sou influente na realeza. A rainha irá acreditar no que eu falar para ela e não
prestaria mais tanta atenção à Marcrof. Eu por exemplo, poderia alegar ter
resolvido a situação aqui, descoberto que somente se tratava de um mal
entendido, e ela iria aceitar essas palavras, ela e o restante do conselho de
lordes. Suas preocupações quanto à capital chegariam ao fim.
- Certamente, você tem
esse poder, mas algo assim iria requerer uma recompensa de alto valor... o que
você aceitaria em troca do seu silêncio?
Howard sorriu
internamente. – É sobre isso que eu quero conversar. – Ele virou a cabeça para
Ilius. – Tem certeza de que confia neste homem para ouvir o que tenho para
falar? Afinal, conheço muito bem a história de Ilius Baltran, filho do
mercenário Carau Baltran e neto de Lukan Baltran, o terrível pirata que
conspirou com os Lhoarys para invadir Zerbet.
O homem de cabeça raspada
fez menção de se levantar, a mão no punho da espada, pronto para atacar, mas
Fergursan segurou seu ombro para impedi-lo. – Calma Ilius, tenho certeza de que
Sir Howard somente está preocupado que as palavras nesta sala se espalhem,
imagino que não seria bom para nenhum de nós, correto?
O lorde assentiu
depressa.
- Pois bem. – Continuou
Angus Fergursan, calmamente. – Meu guarda é extremamente fiel, ele não dirá uma
palavra.
- Perfeito. O que eu
quero em troca... talvez um percentual do que você recebe e não repassa à
capital. 30% do valor, que tal?
- 30%... assim você vai
me fazer falir! Aceitável seriam 15%.
- Você não tem muita
escolha, Angus. Se eu não receber os 30%, voltarei para a rainha com você,
preso.
- E o que me impede de
mandar que te matem aqui mesmo, Sir Howard? – Indagou o governador, levantando
uma sobrancelha. Ilius abriu um sorriso perverso.
- Você sabe muito bem o
que. Se eu não voltar, meus guardas ficarão preocupados. Certamente, a rainha
será avisada e em questão de dias vocês estarão cercados por um batalhão da
guarda real. Detestaria que isso acontecesse. E você ainda deve estar
mensurando o quão perigoso seria atacar meus guardas, não é mesmo? Tenho
certeza de que seus subordinados, os aliados de seu amigo Ilius, estão
observando meu grupo no lado de fora do casarão, esperando por ordens... Saiba
que se eles não retornarem, o resultado será o mesmo. A escolha é sua... perder
30% do seu saque mensal, ou perder todo o dinheiro de uma vez.
O silêncio tomou o quarto
novamente, mas Fergursan acabou por assentir, sério, apertando a mão do nobre.
– Você é um bom negociador, não é mesmo? Concordo com a sua proposta. Você
receberá sua quantia antes de deixar o meu condado.
- Eu gostaria de ver a
quantia agora, se não se importa. – As palavras de Howard Staad eram
despreocupadas à primeira vista, mas ocultavam um tom de ordem. Fergursan
conhecia a reputação de Howard e detestaria ter que enfrentá-lo em uma batalha
corpo a corpo e ele, afinal, não tinha muita escolha.
O governador se levantou
com um suspiro e acompanhou seu visitante para fora do quarto, Ilius logo
atrás, seguiram por outro corredor e mais outro... até finalmente chegarem em
uma porta de madeira um pouco maior do que as demais e o que havia no aposento
do outro lado fez Howard piscar sem acreditar. Tratava-se de um amplo quarto
cheio até quase o teto com todo o tipo de coisa valiosa: desde joias até móveis
de madeira nobre, havia pratos e talheres de prata e muitas moedas douradas e
prateadas, e dentre tanta riqueza havia também outros objetos mais humildes,
como arados e botas...
Mais uma vez, Howard
cerrou os punhos, disfarçadamente, imaginando de onde teriam vindo todas
aquelas coisas. “O que sobrou para o povo depois desses saques? Eles tiveram que
entregar tudo de mais valor para poder pagar o exigido por Fergursan e seus
homens!”, pensou ele, e um ódio irracional invadiu sua mente. A espada estava
tão próxima... talvez se ele atacasse agora, inesperadamente, poderia derrotar
Ilius e prender Angus de imediato, e aquele teatro teria fim, bem como o
sofrimento do povo. Os pertences roubados à sua frente eram a prova do crime de
Fergursan e ele teria que pagar pelo que fez.
Ele, porém, se lembrou
dos soldados do lado de fora, de seu filho e da princesa. Ele precisava manter
a segurança deles e prender o homem dentro de sua casa poderia alertar os seus
empregados e fazê-los atacar, o que certamente não traria resultados bons para
nenhum dos lados. Ele simplesmente assentiu, parecendo satisfeito com o que
estava vendo e voltou-se para os outros dois homens. – Perfeito, você possui algum
registro de tudo que tem aqui?
- Claro, nós mantemos
todas as informações atualizadas, não queremos que nada suma sem nosso
conhecimento.
- Ótimo, vou precisar
desses registros para sabermos o valor de cada item, assim poderei saber quando
chegarmos no meu 30%.
- Claro... Ilius, pode
chamar o escrivão por favor? E peça para trazer o livro de registros de
propriedades. Temos muito trabalho pela frente.
O governador indagou o
motivo do lorde exigir não somente moedas de ouro, mas também joias, botas de
couro, cintos de bronze e outras quinquilharias, mas Howard simplesmente deu de
ombros. – Eu gostei desses itens, eles fazem parte do seu saque, não fazem?
- Sim, mas...
- Então eu tenho direito
de escolher alguns deles para levar comigo.
E assim a escolha dos
itens se prolongou por mais de duas horas. Quando finalmente, tudo foi
selecionado, Fergursan mandou que alguns de seus subordinados colocassem tudo
em sacos de couro e levassem para fora da mansão, mas receou quando lembrou-se
dos soldados do lorde, esperando perto de seus cavalos. Howard o tranquilizou
antes mesmo de dizer uma palavra sobre o assunto, como se tivesse lido sua
mente.
- Não se preocupe, meus
oficiais não fazem perguntas, eles ficarão felizes, achando que a situação em
Marcrof se resolveu e não se importarão com as sacolas que levaremos.
- Então, está tudo bem.
Ilius, ajude os outros com a carga, por favor.
O homem de cabeça raspada
resmungou, olhando com cara de poucos amigos para o nobre ao lado do governador
e assentiu, obediente, atravessando a porta que levava ao lado de fora do
casarão. Howard timidamente guiou Angus Fergursan para fora também, enquanto
conversavam sobre a manutenção do trato quanto aos meses seguintes.
E foi então que as coisas
deram... errado. Muito errado.
George e Chase,
escondidos na carruagem, observaram aliviados quando o lorde reapareceu depois
de horas demoradas e preocupantes, enquanto Ilius e outros empregados do governador
levavam gigantescas sacolas em direção aos cavalos de carga. Os guardas olharam
desconfiados para a bagagem extra, parecendo surpresos, e buscaram o olhar de
seu superior, procurando orientação. Howard somente assentiu, tranquilizador e
então os oficiais auxiliaram os recém chegados a amarrar bem o tesouro oculto
para que não caísse na estrada de volta para a capital. Secretamente, todo o
grupo de oficiais já tinha conhecimento da estratégia do lorde logo quando
haviam deixado Wansfort. Tudo tinha sido cuidadosamente explicado e revisado
para que não houvesse surpresas desagradáveis.
- O que serão essas
sacolas? O que será que tem dentro? – Indagou baixinho George, curioso, olhando
pela janela da carruagem. Chase o puxou para que se afastasse da abertura.
- Fique abaixado, quer
que te vejam? – Cochichou ela.
Simultaneamente, o
oficial de mais alta patente se aproximava furtivamente com mais dois soldados,
por entre os cavalos, em direção ao governador e ao lorde. Eles já tinham
identificado todas as sentinelas nas janelas do casarão, com as flechas
apontadas, cuidadosamente ocultas por volumosas cortinas, e agora se
esgueiravam por um caminho que acreditavam ser ponto cego dos inimigos.
Fergursan estava muito ocupado conversando com Howard para notar a aproximação
e Ilius ainda cuidava das sacolas de tesouro quando o lorde casualmente
virou-se na direção do homem de cabeça raspada, constatando que tudo já estava
preparado para a viagem e que o criminoso e os demais subordinados já
retornavam. Só faltava um pequeno detalhe... Angus Fergursan, o arquiteto
daquele crime vil.
Como um raio e sem dar o
menor aviso, Sir Howard desembainhou a espada e a apontou para o governador.
Imediatamente, o grupo de oficiais que vinha se aproximando sorrateiramente
cercou o criminoso, armas em punho. O homem sentiu a ponta da lâmina tocando
seu pescoço, perto demais para que ele tentasse qualquer coisa... mas ele ainda
tinha os arqueiros, ocultos nas janelas da mansão! Eles certamente acabariam
com aqueles inimigos de uma vez, sem que eles percebessem da onde tinha vindo o
ataque!
Suas esperanças quanto a
isso se acabaram quando Howard voltou a falar, agora em voz alta, para que
todos ouvissem.
- A todas as sentinelas
que estiverem ouvindo isso, saibam o risco que é nos atacar. Se formos mortos,
certamente levaremos seu líder conosco e daqui a poucos dias vocês terão que
enfrentar um batalhão inteiro vindo da capital em busca de nós, pois antes de
virmos para cá eu garanti que uma mensagem fosse enviada à rainha, indicando
que estávamos nos encaminhando para a casa do governador. Se não houver mais
notícias, eles saberão que fomos mortos aqui, de qualquer forma. Não sejam
burros, nos atacando. Que motivo há em morrer em vão? Eu lhes dou a chance de
se renderem enquanto não for tarde demais.
O silêncio perpetuou-se
no topo da colina e então, as flechas rapidamente sumiram de dentre as cortinas
dos andares superiores da casa, e não mais retornaram.
Ilius segurava o punho da
espada, pronto para investir contra os soldados, mas atrás dele e ao redor, seu
grupo também estava cercado de soldados, todos prontos para batalhar, se
necessário fosse.
- O que está acontecendo,
Chase? – Indagou George quando, contrariando o próprio argumento, a princesa de
Zerbet levantou a cabeça para olhar pela janela.
- Shhhh, fique quieto.
Nada de bom, posso garantir. – Cochichou ela, quase que em um sussurro
inaudível.
Howard continuou a falar, dessa vez olhando
diretamente para Fergursan. – Está preso governador, por extorquir o povo de
Marcrof e se apropriar de seus bens.
Mas Fergursan o desafiava
com o olhar, mesmo estando a espada tão mortalmente próxima. Ele riu-se baixo
com aparente desdém. – Você foi inteligente, lorde. Aparecendo na minha casa
assim, indicando que estava interessado em lucrar com a riqueza que eu,
arduamente, adquiri. Mas você só queria saber onde estavam os itens, não é?
Howard deu de ombros. – E
se possível, levar alguns como prova. Caso contrário, você ou seus funcionários
poderiam sumir com tudo que foi roubado antes que o batalhão voltasse para a
busca de evidências que serão apresentadas no seu julgamento. Guardas?
Os homens que cercavam o
governador se aproximaram, acompanhados de mais quatro soldados e, enquanto
alguns mantinham as armas a postos, prontos para atacar caso ele tentasse algo,
outros amarraram seus braços bem apertado e o conduziram em direção a um dos
cavalos. Mas Fergursan parecia estranhamente tranquilo, como se soubesse de
algo que eles não sabiam. Ele olhava para Ilius, disfarçadamente esperando...
os pelos da nuca de Howard se arrepiaram e ele sentiu o perigo quando viu o que
o governador tinha visto antes dele: a luz do sol parecia refletir em algo
brilhante, parcialmente oculto pelo cano da bota direita do homem de cabeça
raspada. Os guardas que o cercavam ainda não tinham reparado, mas o lorde tinha
certeza de que se tratava de uma arma... e havia outro detalhe que ele somente
naquele momento tinha percebido, algo que fez seu coração bater como um tambor
em seu peito... o olhar de Ilius tinha se fixado em algo à sua direita e o seu
rosto cruel exibia um terrível sorriso. O pai de George acompanhou rapidamente
o olhar e constatou, como ele temia, que a atenção do outro homem estava
voltada para a carruagem. Do lado de dentro do veículo, Chase e seu amigo não
tinham percebido ainda o olhar do inimigo, a princesa voltava-se preocupada
para Howard, parcialmente oculta pela pequena janela. No entanto, Ilius a tinha
visto, e sem dúvida, a tinha reconhecido e já arquitetava um meio de tirar
proveito da presença da princesa para reverter aquela situação.
O tempo parecia
transcorrer lentamente ao redor do lorde: o mais fiel dos subordinados ao
governador pareceu tropeçar para somente então se abaixar e pegar a adaga que
mantinha oculta. Simultaneamente, os demais aliados de Fergursan levantaram
suas armas e investiram contra os soldados que os cercavam, confundindo-os e
dando oportunidade para que Ilius atingisse seu objetivo. O homem moveu-se como
uma serpente, apunhalando um dos oficiais que se pôs em seu caminho e logo em
seguida abria a porta da carruagem com violência. Howard somente teve tempo de
correr em direção àquela confusão, mas estava longe demais para fazer alguma coisa.
No instante seguinte,
Ilius ressurgiu do lado de fora da carruagem, segurando ameaçador a lâmina da
adaga no pescoço de Chase. A princesa não ousava virar o pescoço pois qualquer
movimento brusco poderia alertar seu atacante e então, seria o fim. O sujeito
surgia como uma sombra maligna atrás da herdeira, seu sorriso ainda mais largo,
cruel, impiedoso. Ele se afastou lentamente do veículo, levando-a consigo, e
não demorou para que um pequeno vulto conhecido aparecesse também na porta da
carruagem, era George.
Howard olhava para a
cena, lutando para manter a calma. Ele não via ferimentos em George,
felizmente, mas a princesa estava correndo risco de vida. Mentalmente, ele se
condenou por ter permitido com que Ilius se aproximasse tanto de onde as crianças
estavam, e também de ter concedido que os dois fossem naquela viagem.
A voz do captor de Chase
eram triunfantes. – Todos, larguem as armas. Vocês irão nos deixar ir,
incluindo a Fergursan, ou verão a herdeira do trono sangrar até a morte.
Os soldados que
batalhavam não muito distante dali olharam para a cena preocupados e,
lentamente, fizeram o que foi mandado, enquanto os subordinados do governador
apontavam-lhes as armas e empurravam suas espadas para longe de seu alcance.
Os demais oficiais, que antes
acompanhavam Fergursan, olharam confusos para Howard, que assentiu devagar.
Eles, então, soltaram o nó da corda que prendia os braços do governador,
enquanto ele resmungava, ferozmente. – Rápido, não ouviram o homem? Detestaria
ter que ver uma criança morrer, mas vocês sabem que Ilius não vai hesitar.
Tão logo se libertou, ele
já se afastava dos oponentes, seu olhar pousado sobre Chase. – Então a jovem
alteza decidiu viajar até minhas terras? Estou sinceramente honrado, pena que
tenhamos nos encontrado em uma situação desagradável como essa. Mas vossa
alteza não vai se importar em ordenar que seus soldados não tentem bobagens
enquanto nós escapamos, vai?
Entre as cortinas das
janelas, as flechas voltaram a surgir, ameaçadoras.
Chase mordeu os lábios e
falou alto, para que todos ouvissem, o tom consideravelmente sereno, ocultando
os verdadeiros sentimentos. - Não, não vou. Por favor, não tentem nada. – Ou a
futura rainha vai morrer. – Completou Ilius, apertando mais a lâmina no pescoço
da garota.
- Vamos soltá-la em algum
momento durante nossa fuga. Não tentem nos seguir. – Declarou o governador,
indicando a seus funcionários que tomassem os cavalos dos oficiais e eles assim
o fizeram, principalmente aqueles que continham as sacolas das ocultas e estranhas
riquezas que Fergursan amava tanto. Logo, se apoderaram da carruagem e Ilius
começou a ir em direção a ela, andando de costas com Chase ainda à sua mercê,
para que todos vissem e percebessem o perigo que seria tentar algo.
Mas Chase ainda não tinha
desistido, nem ela e nem George. O menino tinha sido empurrado para longe, mas
nenhum dos inimigos prestava particular atenção a ele, nem mesmo os arqueiros
na mansão, as únicas pessoas que estavam atentas à sua presença eram Howard e
Chase.
Bastou um olhar da
princesa. Um olhar determinado para os outros dois, rápido demais para que
Ilius percebesse. Eles sabiam que ela planejava algo e, talvez ela precisasse
de uma distração.
E George já tinha
decidido que seria essa distração. Naquele momento, os três pareceram conversar
silenciosamente, e entenderam cada palavra que disseram um ao outro. Só haveria
uma chance e Howard sabia que se falhassem, Chase estaria perdida. Mas ele também
conhecia a fama do homem de cabeça raspada. Sabia que ele não deixaria Chase
viver, nem mesmo se eles deixassem os inimigos escaparem impunes. Fergursan e
seus homens iriam seguir seu caminho então, e Ilius teria a satisfação de matar
mais uma de tantas vítimas.
“Não podemos nos dar ao
luxo de falharmos. Então, não falharemos”, pensou ele, determinado.
E então George pegou uma
pedra solta no chão, mirou e arremessou com toda a força que conseguiu.
O projétil deslocou-se no
ar com tamanha rapidez que para os demais era somente uma sombra desfocada
quando atravessou o espaço livre e atingiu o ombro direito de Fergursan,
gerando uma dor excruciante que o fez recuar cambaleante.
Isso causou o efeito
esperado: Ilius, que antes prestava atenção na princesa, voltou-se rapidamente
para seu líder e procurou pelo atacante, afrouxando levemente a pressão da
lâmina sobre o pescoço da jovem, até que o metal gelado não estava mais em
contato com sua pele. Isso deu a Chase a chance que ela esperava... rápida como
um raio, ela pisou no pé direito do sujeito ao mesmo tempo que atingia seu
tórax com um dos cotovelos.
Surpreso pela dor
instantânea, Ilius involuntariamente afastou ainda mais o braço com a adaga do
pescoço de Chase, o que a deu oportunidade para escapar. Ela correu o máximo
que pôde, com o homem em seu encalço, mancando. Flechas lançadas das janelas
atravessavam seu caminho, mas Fergursan sinalizava para que parassem de atirar.
Se ela morresse ali, eles não teriam uma suposta moeda de troca e estariam
perdidos.
Mas Ilius não se
importava mais com isso, ele queria vingança. E isso foi a sua ruína.
Ao mesmo tempo, Howard
levantou a espada, acompanhado dos demais oficiais ao seu redor. Seu olhar
cruzou o rosto assustado da menina que corria em sua direção. – Alteza,
abaixe-se! – Gritou ele e Chase obedeceu, se jogando no chão e deslizando sobre
a terra da colina, levantando uma nuvem de poeira que cegou o seu perseguidor.
Assim, ele não percebeu o
gesto de Howard quando levantou a espada acima de sua cabeça, se preparando
para lançá-la. Ele não viu quando a lâmina ameaçadora da arma girou como um
bumerangue em direção ao seu alvo. E ele não entendeu quando olhou para baixo,
tomado de dor, e viu uma espada atravessada em seu peito.
E foi a última batalha de
Ilius.
Chocados ao assisti-lo desabar
no chão, inerte, os demais subordinados do governador não apresentaram muita
resistência quando os soldados recuperaram suas armas e os cercaram novamente.
Eles não tinham mais a refém, sua maior vantagem, e a precisão assustadora de
lorde Howard assustara até mesmo o mais destemido daqueles homens. Eles não se
arriscariam ainda mais, sabendo que não havia motivos para os oponentes não
investirem com as armas em punho. Não por Fergursan. Alguns ainda tentaram
fugir, se embrenhando no mato para longe daquela situação, sem olhar para trás.
Um pequeno grupo de soldados se aglomerou ao redor de um soldado caído, aquele
que tinha sido esfaqueado por Ilius, e o ajudaram a se levantar. O sangue ainda
escorria pelo ferimento, mas felizmente não parecia ser nada grave e
provavelmente, ele estaria curado dentro de algumas semanas.
Mas o perigo ainda
pairava no ar, quando Howard ajudou a princesa a se levantar. Os sentidos da
moça estavam à flor da pele e então, ela finalmente viu o brilho ofuscante da
ponta da flecha quando era apontada na direção do lorde, em uma das janelas
mais próximas. Os instintos de Chase a fizeram agir antes mesmo de pensar.
- Cuidado! – Gritou ela
enquanto empurrava o nobre para longe dela, no exato momento em que a flecha
atravessou o espaço vazio entre eles, se fincando no chão de terra barrenta,
discretamente mortífera. Os dois se viraram rapidamente na direção da origem do
ataque.
Dentro da mansão, os
arqueiros se prepararam para atirar novamente, mas o lorde foi mais rápido e
quando eles se viraram naquela direção, conseguiram ver a lâmina novamente no pescoço
do governador, enquanto um grupo realmente furioso de oficiais tornou a
amarrá-lo. – Agora sim, governador, você está preso. Soldados, amarrem os
subordinados desse sujeito, levaremos todos para a cidade de Marcrof. Incluindo
os arqueiros...
Com essas palavras, as
flechas novamente desapareceram de cada janela, por entre as cortinas dos
muitos quartos, como se nunca tivessem existido.
Alguns soldados invadiram
o casarão, em busca dos criminosos, mas eles desapareceram, sem deixar
vestígios.
- Deixem que fujam, como
seres desonrosos que são. Irei mandar um grupo de busca atrás deles e dos que
fugiram pela mata.
- Ah, esses eu o desafio
a encontrar. – Comentou Fergursan, dando de ombros enquanto era empurrado para
perto de um cavalo imenso no qual um homem com capacete de soldado lhe esperava
sombrio. – São homens de Duan. Ou pelo menos eram, quando ele era vivo. Ruan, o
filho, me emprestou alguns de seus arqueiros para proteção individual.
Howard riu-se,
sarcástico. – Sim, imagino que ele não tenha cobrado nada por esse serviço...
Quantas moedas de ouro foram entregues para o rei dos ladrões? Quantos tesouros
roubados você entregou a ele em troca dos serviços???
- Prefiro contar os
detalhes que me forem perguntados no dia do julgamento. Agora, me leve logo,
estou ficando entediado com essas conversas.
Poucos dias depois, eles
estavam chegando na cidade capital de Wansfort e não estavam sozinhos: o grupo
surgia do horizonte com o dobro de soldados de antes.
Logo depois da captura
dos subordinados de Fergursan e do próprio governador, o líder do conselho de
lordes havia feito uma carta para a rainha, requisitando um envio maior de
efetivo de oficiais para auxiliar no transporte dos presos, o que proporcionara
um grupo de vigília bem mais extenso, com montaria suficiente para levar todos
os antigos empregados do governador, incluindo os capturados dentre o grupo de
foragidos, e algumas sacolas cheias de artefatos do povo de Marcrof, que seriam
utilizadas como prova no julgamento de Fergursan. Como era de se esperar, os
arqueiros de Ruan não foram capturados, mas Howard não ignoraria a presença
deles em Marcrof. As informações coletadas seriam registradas para fins de
futuras investigações.
Quanto ao possível golpe
a seu velho amigo, o lorde Ronan, ele faria as devidas queixas ao conselho de
lorde, para que determinassem as ações a serem tomadas. Howard garantiria que
um grupo de oficiais fosse enviado ao castelo do responsável pelo condado de
Marcrof, para auxiliar na sua segurança enquanto os governadores eram
interrogados quanto à pretensão de tomada do poder do condado.
Chase e George não
falavam muito, enquanto a carruagem passava pelas últimas árvores da floresta e
atravessava os limites de Wansfort. De fato, eles andavam muito silenciosos
desde o ocorrido. Nenhum dos dois jovens imaginara que correriam tamanho perigo
quando, muitos dias antes, eles tinham partido daquela mesma cidade em direção
ao extremo oeste.
Mas havia algo de diferente
naqueles dois. Howard conseguia enxergar isso só de olhar.
George tinha visto uma
batalha de perto, presenciado sua melhor amiga se tornar refém e enfrentado os
inimigos, mesmo sendo muito menor que eles. Isso acendera uma chama de valentia
no seu coração. O que antes, para ele, secretamente, era apenas uma dúvida,
agora tinha se transformado em certeza: ele não estava se dedicando para se
tornar um soldado só para deixar o pai orgulhoso, ele realmente queria isso.
Talvez agora, pela primeira vez, ele não tinha mais dúvidas.
Já a jovem princesa tinha
um novo brilho no olhar, muito embora ninguém mais além dela soubesse o
verdadeiro motivo.
Tudo aquilo pelo qual
tinham passado, toda aquela viagem e os perigos que tinham enfrentado, tinham
finalmente afastado os terríveis pesadelos da herdeira. Ela não era mais
assombrada por aquele fatídico dia, o dia em que sua mãe nunca mais fora a
mesma, quando seu pai...
Pelo menos por enquanto,
isso tudo tinha afastado esses pensamentos. E realmente, para ela, era um
motivo de felicidade. Um motivo de alívio. Ela podia finalmente fechar os olhos
e pensar em coisas boas, sem ter que se lembrar do sofrimento.
Ela havia refletido sobre
sua participação na missão de lorde Howard. Talvez, afinal, se ela e George não
estivessem estado com ele e os soldados durante a prisão de Fergursan, as
coisas tivessem se desenrolado de forma diferente, talvez fosse mais simples
para o lorde. Mas talvez não... ela lembrou-se da sensação ruim que tinha tido
anteriormente, da vontade que a impeliu até aquela colina. “O destino me queria
lá”, pensou ela, não pela primeira vez.
Ilius. Os homens de Ruan.
A flecha fatídica.
Mesmo que as coisas não
tivessem transcorrido de forma pacífica, talvez fosse para ser assim e ela
finalmente deixou de se preocupar com aquilo. Simplesmente não haveria
possibilidade dela compreender, naquela momento, como o destino realmente
moldou o seu caráter com aquela pequena aventura.
Chase segurou a mão de
George ao seu lado, no assento da carruagem, quando a multidão surgiu nas ruas
de Wansfort ao seu redor, pessoas de todas as aparências fazendo seus trabalhos
diários, a mistura de aromas atravessou a pequena janela e eles puderam sentir
o cheiro dos pequenos campos de lavanda ainda intactos além das últimas casas,
e o cheiro do ferro em brasas das grandes forjas da cidade, em pleno
funcionamento e souberam que estavam em casa novamente, finalmente.
Ela se tornaria uma boa
líder, um dia, assim como sua mãe era. E mesmo se ela tivesse dúvidas, haveria
pessoas ao seu lado para ajudá-la quando precisasse. Pessoas como Sir Howard
Staad, o fiel empregado do palácio, Flynn, ou mesmo sua mãe e os outros lordes
do conselho. E como George, seu grande amigo, que se arriscara por ela ao
atingir Angus Fergursan com uma pedra, sem ter em mãos qualquer arma para se
defender.
O dia passou e o
ex-governador e seus funcionários foram levados às celas do palácio, para aguardar
o julgamento, que não tardou a acontecer. Como de praxe, foi presidido pela
rainha Vitória, que em conjunto com um grupo de nobres, avaliou as evidências
apresentadas por Sir Howard e ordenou que todos os pertences fossem levados
para Marcrof, para serem devolvidos aos seus verdadeiros donos, assim como todo
o resto que ficara na mansão de Fergursan. Os culpados foram levados novamente
para suas celas, onde ficariam por muitos anos e foi somente quando soube desta
notícia que Chase respirou, aliviada.
Tinha tudo valido à pena,
afinal.
Mas aquela viagem também
tinha servido a ela como um aviso: havia pessoas se aproveitando da situação
precária em que o povo se encontrava, existiam predadores à espreita,
aguardando pela hora de atacar. Daquela época em diante, ela jurou para si
mesma que acharia, ela própria, um meio para ajudar aquelas pessoas. A Doença
do Reino estava fora de controle, a fome atingia mesmo algumas das grandes
cidades agora e era só uma questão de tempo até estender seus domínios para o
restante de Zerbet.
Mas havia algo mais, algo
que ficara em sua mente desde o dia da batalha na colina de Fergursan. Ela
revia o momento em que Howard a salvara de Ilius, imaginando que ser uma
princesa requeria não somente responsabilidade, mas proteção. Certamente, se
tornar rainha era ainda mais arriscado.
Era verdade a importância
da guarda real para a segurança da realeza, mas possivelmente... aprender a se
defender fosse pertinente a ela como futura governante de todo um reino.
- O povo depende de
mim... É um papel muito arriscado para depender totalmente do trabalho dos
oficiais, por mais competentes que eles sejam. – Sussurrou ela para si mesma,
ainda relutante. – Acho que eles merecem, eles e todos os outros de Zerbet
merecem... que eu saiba me proteger caso o pior aconteça. Talvez seja útil
algum dia...
A jovem moça ainda
permaneceu alguns segundos sentada em sua escrivaninha, decidindo. Afinal, o
que estava para fazer contrariava toda a tradição das mulheres na realeza,
desde a fundação de Zerbet. – Mas esses tempos são outros, são mais violentos. É
chegada a hora para algumas mudanças!
Chase abriu a porta
rapidamente e atravessou o corredor apressada, antes que mudasse de ideia.
Desceu a escadaria do palácio até o térreo e se dirigiu ao pátio. Os guardas
abriram espaço para que ela passasse, fazendo uma breve reverência e no momento
seguinte ela estava no jardim, onde as flores reluziam com a luz da manhã, e o
som do vento se misturava com os barulhos da cidade e com o som mais alto e
estridente das lâminas das espadas se chocando, enquanto os oficiais da guarda
real treinavam, não muito longe dali. Chase respirou fundo e atravessou o pátio
com facilidade, se aproximando da área de treino e ali estavam dois soldados
recém graduados lutando habilmente em um grande círculo de terra batida. Ao seu
redor observavam Sir Squif, o líder da Academia e ao seu lado, George Staad,
seu futuro aluno. Os dois se curvaram levemente quando repararam sua presença,
e a princesa respirou fundo mais uma vez, se preparando para falar.
- Vossa alteza veio
observar os soldados? – Indagou Squif, respeitosamente, mas Chase balançou a
cabeça negativamente.
- Eles são habilidosos,
disso não há dúvida, Sir Squif. No entanto, hoje eu percebi que não posso
depender totalmente dos outros, um dia a segurança do reino vai estar nas
minhas mãos.
O homem franziu o cenho,
confuso. – Alteza, perdoe-me, mas não entendi o que quis dizer.
- Estou dizendo que eu
preciso aprender a me defender. Se vou me tornar a rainha, estou convencida de
que isto é tão importante quanto as habilidades em diplomacia, e espero que
nunca seja necessário, mas... depois do que eu vi em Marcrof, com salteadores e
roubos de pertences, não poderia arriscar a vida dessas pessoas por ser
indefesa.
George riu-se,
brincalhão. – Indefesa? Alteza, eu conheço a senhorita muito bem, e tenho
certeza de que “indefesa” não é a palavra certa para te definir.
- Estou lisonjeada,
George, mas não é o suficiente.
- Mas alteza... –
Continuou Squif. – A tradição é...
- Eu conheço a tradição,
Sir Squif, mas o mundo mudou. E as normas da realeza devem entender isso.
Mudanças são normais e vou garantir que elas ocorram, se for para o bem do
nosso povo. Agora, me diga, por acaso no arsenal teria alguma orralin
sobressalente para a princesa aqui?
Fim.
Copyright © 2020 de Bryan S. Duarte
Todos os direitos reservados. Este conto ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha do conto.
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Parabéns, pelo Conto e por pensar em TODOS os leitores 👏🏻👏🏻👏🏻
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