A lâmina da Espada: um conto da Saga Real de Zerbet

SinopseChase tem apenas 12 anos, quando finalmente descobre o mundo além da cidade Wansfort. Protegida por Sir Howard, mantida em anonimato e acompanhada de seu melhor amigo, George e mais um pequeno batalhão de soldados, Chase conhece o povo do oeste e seu temor pelos Lhoary, a tribo selvagem que um dia ameaçou as terras de Zerbet, mas tudo vira de ponta a cabeça quando a missão aparentemente simples de Sir Howard se torna repentinamente... violenta.

Seria Chase corajosa o suficiente para sobreviver a isso?

***************************

***************************

Um trovão retumbou pelos corredores escuros do palácio real e Deise Elisabeth Chase acordou de sobressalto, os olhos atentos a qualquer movimento. Porém, não havia nada, muito embora sua mente ainda não soubesse distinguir aquilo que era real, do pesadelo do qual tinha acordado.

Era o mesmo todas as noites agora, repetidas vezes, velhas lembranças de um momento no tempo. Um momento que a havia marcado tão profundamente quanto a ferida de uma adaga no coração, e que viria a se tornar parte de quem ela estava destinada a ser, mesmo ela sendo muito jovem para saber.

A menina de 12 anos, agora com quase 13, fechou os olhos e respirou fundo como costumava fazer sempre que algo a atemorizava. Ela deixou com que a sua respiração suavizasse até que pudesse pensar mais claramente e então, pousou novamente a cabeça no travesseiro macio.

Uma voz, a de sua mãe, perpetuava no fundo de sua mente. “Fique aqui... está bem, querida?”, fique aqui... – eu fiquei, mamãe... – ela sussurrou, baixinho, para si própria. – Se eu tivesse feito alguma coisa... tolice Chase! Não poderia ter feito nada, e eu era ainda tão criança.

Ela não havia visto a cena terrível que sua mãe vivenciara, tampouco entendera de imediato o que havia acontecido naquela noite fatídica e mal se lembrava do funeral, mas mesmo assim sempre que sonhava com isso, ela podia se ver ao lado do corpo do rei Pedro de Zerbet, o rosto fixo em uma expressão eterna, o olhar distante e sem brilho. Imóvel. A taça de vinho no chão, de onde viera o veneno, maldito veneno que trouxera ainda mais desgraça a um povo em sofrimento e a uma família mais do que a qualquer outra. A rainha Vitória nunca mais fora a mesma, e em seu prolongado luto ela se tornara não mais do que uma sombra da mulher sorridente que um dia fora.

Chase franziu o cenho e tentou esvaziar a mente. Estava ainda muito cedo para ela acordar, mas o som das trovoadas ainda chegava aos seus ouvidos. Ela detestava trovões. Tinha respeito por eles, mas nunca conseguia prever quando aconteciam, por mais que tentasse e sempre levava um baita susto quando os raios cruzavam os céus em noites de tempestade.

Finalmente, depois de alguns minutos angustiantes, ela começou a pegar no sono, apegada a um único pensamento entusiasmante: no dia seguinte ela encontraria com George, seu melhor amigo, e como era de costume entre os dois eles sempre buscavam coisas novas para fazer no palácio, repleto de corredores e portas do jeito que era, mas dessa vez eles iriam fazer algo diferente, algo que a vinha animando cada dia que passava desde o momento quando conseguira a confirmação do pai de George, Sir Howard: eles iriam deixar Wansfort, pela primeira vez em suas vidas.

Sob supervisão irrestrita de Howard Staad, fiel amigo da rainha Vitória e líder do Conselho de Lordes, George e Chase iriam conhecer os mares do oeste, acompanhando o nobre numa breve missão que requeria sua atenção. Howard era o único a quem Vitória confiaria a vida de sua filha, mas Chase tinha que admitir o quanto tinha tentado convencer ele e sua mãe antes de qualquer decisão e o quanto torcera por aquela notícia.

Mas agora era certo, e ela finalmente teria sua primeira oportunidade de conhecer o povo além da capital, povo que um dia seria de sua responsabilidade. Para outros, talvez esse pensamento lhes tirasse o sono, mas por algum motivo isso a distraiu dos sons assustadores e afastou as lembranças ruins e pela primeira vez em algum tempo, ela pôde dormir de verdade.

Não foram raios de sol que os receberam quando a porta do palácio se abriu para o esplêndido jardim que tantas vezes cativara a atenção da jovem Chase. Desta vez, as nuvens ainda pairavam no ar, teimosas de irem embora, mesmo que a tempestade já houvesse passado havia horas. Isso, no entanto, não impediu que os dois adolescentes vissem beleza em cada flor daquele jardim, cada arbusto.

Aquilo era o mundo para eles... ou melhor, havia sido até aquele momento. Eles já haviam visitado a cidade além dos portões protegidos, mas nada tão longe como estavam prestes a fazer. Chase via mais beleza naquele dia, afinal, do que em qualquer outro dia que podia se lembrar. Já George estava, naquele momento, mais atento aos soldados que treinavam ao redor da Escola de Armas, que as pessoas costumavam chamar de academia de guerra, um edifício discreto diante da beleza do palácio real, mas que formava alguns dos guerreiros mais habilidosos do reino inteiro.

Ele queria ser um deles um dia, Chase sabia disso... talvez mais do que ninguém. Não haviam números que pudessem contar as vezes em que suas conversas terminavam em George falando algo como “eu quero proteger o reino, vou ser um guarda real um dia” ou “quero ser igual ao meu pai” ou “vou cumprir meu dever de proteger vossa alteza”, esse último irremediavelmente seguido por Chase lhe fuzilando com o olhar, as palavras na ponta da língua: “pela última vez George, pare de me chamar de alteza”.

Ela conhecia o papel dos guardas reais, sabia a importância deles e da guarda do reino para a proteção de Zerbet, tinha aprendido sobre isso durante as aulas cansativas no palácio. Particularmente, não nutria muito interesse na arte da luta, tinham lhe dito que isso não cabia a uma mulher fazer. Ela deveria estudar diplomacia, ou algo assim para que pudesse se tornar uma boa rainha um dia, era esse o dever dela para com o seu povo, seguindo as tradições que sua mãe e sua avó tinham seguido antes dela. Em alguns anos, ela estaria liderando todo um reino, ao lado de um marido que ainda não conhecera, era assim que deveria ser. Era assim que havia sido determinado, antes mesmo dela sequer nascer, muito embora houvesse coisas com as quais ela não conseguia concordar...

À medida que se aproximavam dos degraus da carruagem, raios de luz emergiam ruidosos por entre a escuridão dos céus, até o chão florido e mais além. Chase encarou isso como um bom presságio e, por um instante, a princesa se esqueceu do que estava fazendo. Até que George a despertasse com um chamado. – Chase, Chase! Cuidado com o degrau!

E por um fio, ela se salvou de tropeçar violentamente. Sir Howard ajudou-a na subida e a acomodou num dos bancos da carruagem. Vitória antes os observava de longe, mas depois de quase ver um acidente pôs-se a correr na direção de onde eles se encontravam. Os demais soldados abriram caminho para a rainha, mas ela se deteve na porta da carruagem e abriu um leve sorriso ao ver que sua filha estava bem. George se sentou calmamente ao lado da amiga e fez uma leve reverência à rainha.

- Estou bem, mãe. – Disse Chase, os pensamentos ainda nas nuvens, imaginando o que estava por vir naquelas próximas horas. – Não se preocupe, Sir Howard vai estar conosco.

- É, acho bom mesmo... – As palavras cortantes foram dirigidas diretamente para o lorde, que se ocupava ajustando as rédeas dos cavalos. Ele, porém, devolveu um simples sorriso sincero. Vitória continuou, ainda séria. – Eu não sei como concordei com essa viagem, Marcrof não é o lugar para uma princesa... principalmente agora.

Com a mesma expressão serena no rosto, Howard se aproximou. Seus cabelos compridos estavam presos em um rabo de cavalo e as roupas eram um tanto simples para um lorde, nada muito diferente do que um camponês costumava usar: botas de couro simples, uma calça e uma túnica feitos de um tecido grosso que lhe seria um tanto útil naquela época do ano, afinal os mares do oeste tinham a fama de serem os mais frios de todo o reino, com exceção, talvez, das águas que rodeavam a cidade de Boundcount, ambos por conta de suas correntezas advindas do Polo Norte. Ademais, a brisa marítima da cidade de Marcrof, dizia-se, era de gelar os ossos. Eles estavam no inverno, e embora em Wansfort a estação não fosse muito diferente do outono, não seria incomum eles encontrarem temperaturas desconfortavelmente baixas conforme adentrassem em direção ao extremo oeste.

- Não se preocupe com nada, majestade. Eu tomarei conta da princesa Deise como se fosse minha filha.

“Ele de novo com esse nome, Deise... não sei porque as pessoas não entendem que eu gosto de ser chamada de Chase!”, pensou a menina, subitamente aborrecida.

Vitória encarou o lorde e a filha, parecendo que tinha lido cada palavra de seus pensamentos, mas deu de ombros em seguida, desviando o olhar dos dois. – Eu não tenho dúvidas disso, mesmo assim não gosto da ideia.

- Mãe... – Começou Chase, ansiosa.

- Tudo bem filha! Mas me mandem cartas assim que chegarem lá. Não quero ficar muito tempo sem ter notícias de vocês... – Ela hesitou novamente, como se sentisse que iria se arrepender disso, mas então forçou um sorriso. – Boa viagem.

Momentos depois, o grupo estava preparado para partir. Chase e George respiraram fundo quando os cavalos que levavam a carruagem puseram-se em movimento, o som dos cascos no chão abafando qualquer outro som. O grupo de soldados avançou ao redor deles, em formação, preparados para qualquer situação e o único que estava com eles dentro da carruagem era Sir Howard, a orralin pousando em seu colo, muito embora ele parecesse bastante distraído com a paisagem que via pela pequenina janela ao seu lado.

Mais cedo naquele dia, Sir Howard lhes tinha explicado que não era seguro para eles dois cavalgarem ao lado dos soldados, muito embora Chase imaginasse ser uma experiência bem divertida. Em vez disso, ele tinha pensado naquela carruagem, que em nada lembrava alguma usada pela família real e que chamava menos atenção que qualquer outra disponível para a Academia e para a realeza. Ali, eles estariam mais protegidos no caso de um ataque, e caso o pior acontecesse, Howard estaria ali junto com eles para protegê-los, e ninguém, absolutamente ninguém no reino de Zerbet desconhecia as habilidades em batalha de Sir Howard Staad, um dos mais lendários guerreiros que já manuseara uma orralin. Somente a presença dele deveria afugentar qualquer ladrão. Na ocasião ele também se preocupara em arrumar-lhes vestimentas adequadas para a viagem, de forma que chamassem menos a atenção, assim como as roupas dos soldados que os escoltariam, que ocultavam suas verdadeiras ocupações.

Chase lembrava-se das exatas palavras do lorde: “por mais que muitos ainda tenham apreço pela família real, é melhor prevenir do que remediar, e chamar o mínimo de atenção possível”. George havia deixado para trás os tecidos nobres e os sapatos favoritos e parecia vestir algo muito semelhante ao pai, com exceção de que o jovem Staad não carregava um cinto, nem uma arma, e sua túnica era levemente mais escura em tom do que a do outro homem. Já Chase havia prendido os cabelos em um coque e os escondido por baixo de um pano marrom como o que as moradoras de Wansfort costumavam usar.  Trajava um vestido combinando e uma bota preta em tamanho menor do que aquela calçada pelo amigo. Não era algo que ela costumava usar em público, mas não podia negar o quanto se sentia confortável em vestir algo parecido com o que seu povo realmente usava.

De fato, ela nunca gostara muito dos longos e belos vestidos que tinha que usar todos os dias no palácio e nas festividades... eles eram sim muito bonitos, mas a faziam se sentir mal ao pensar no motivo de nem todas as pessoas de Zerbet poderem trajar algo como aquilo. O palácio era sempre cheio de fartura e mesmo naquele momento, em meio à Doença do Reino, as cozinhas do palácio estavam sempre recheadas de surpresas deliciosas, da mais saborosa carne até os mais elaborados doces. Enquanto isso, o povo passava fome. Não seria capaz, no entanto, de criticar o trabalho que seus pais haviam feito pelo reino até então. O problema não era o rei ou a rainha. Pedro lutou tanto por uma solução para a Doença do Reino que ele mesmo quase adoeceu, e se estivesse ainda vivo, ela tinha certeza de que seria capaz de dar a vida, se fosse necessário, para que seu povo pudesse ter uma vida digna novamente, mas mesmo assim, haviam aspectos, alguns intrínsecos demais para serem mudados em tão pouco tempo, mas que eram tão errados que doíam o coração da jovem princesa de Zerbet. Quão lindo seria se todos pudessem desfrutar do mesmo que ela sempre desfrutara...

E agora ela estava do outro lado dos muros, serpenteando numa carruagem pelas estreitas e agitadas ruas de Wansfort. Não podiam ver muito pela janela, e tinha sido orientada para tal, afinal se olhasse, outras pessoas do lado de fora poderiam reconhecê-la e as notícias correm rápido por Zerbet. Logo, todos saberiam que a princesa estava fora do palácio, e isso poderia pô-la em perigo. Mesmo assim, de relance, ela conseguia enxergar o comércio de rua, as pessoas que andavam, carregavam seus burros ou levavam consigo sacolas com as mais variadas coisas. Conseguia distinguir as ruas secundárias, amontadas de pessoas, algumas com olhares desesperados, outras pedindo dinheiro, e eram tantas...

“Como eu posso cuidar de todas elas? Como eu poderia?!” pensou ela e seu coração de súbito disparou. Uma pessoa só comandando o reino? Isso era possível? Que doido teria tido uma ideia como aquela?

Ela quis pular da carruagem, quis correr até seu povo e lhes dizer que ia ficar tudo bem. Mas não podia mentir para eles, pois nem ela mesma saberia dizer quando a Doença do Reino teria um fim. Ficou ali então, no mesmo lugar de antes, parada, estática, no assento do veículo, ouvindo o bater de cascos do lado de fora, os olhos disparando entre a orralin que Sir Howard tinha preparada para usar contra os oponentes, caso houvessem, e o rosto de seu mais velho amigo, George.

O menino, por outro lado, não havia se distraído nem por um segundo. Ele sentia um dever quase sagrado de proteger a princesa, mesmo que mal soubesse ainda como usar uma arma. Era certo que no ano seguinte ele tentaria uma vaga para a Escola de Armas, para cumprir seu sonho como soldado e protetor da realeza, mas a verdade é que Chase o veria menos, por conta dos treinos, e ela queria um amigo mais do que um soldado. “Está sendo estúpida, Chase. Ele vai continuar sendo seu amigo”, pensou ela, mas uma pontada de solidão lhe invadiu os pensamentos. George tinha sido seu irmão por tanto tempo, o que seria dela se tivesse que assistir as aulas de etiqueta sozinha, ou brincar no pátio sozinha?

Por fim, ela suspirou. Eram muitos pensamentos para uma pessoa só e ela simplesmente segurou delicadamente a mão de George, ficando feliz por ele estar ali. O garoto abriu um sorriso, pois conhecia ela o suficiente para entender quando a princesa estava nervosa.

- O Oeste deve ser lindo, não é Chase? – Disse ele baixinho, para que o pai não ouvisse. Howard o repreendia sempre que o filho não se referia à princesa como “vossa alteza” ou ao menos como “princesa Deise” como diziam as regras de etiqueta.

Chase, por sua vez, o encarou e riu-se entendendo a intenção do amigo de desviá-la das preocupações. Nada disso, apenas buscou relaxar no assento e imaginar o que a missão reservava para eles. Talvez esse pensamento expulsasse todos os outros, afinal.

Eles haviam deixado Wansfort fazia horas e a cidade tinha dado lugar a uma floresta em todas as direções. A trilha que seguiam era somente iluminada pela luz da lua e o comboio avançava com um ritmo reduzido, com o objetivo de chamar menos a atenção e evitar acidentes. Em trilhas como aquela, era comum que um cavalo desavisado atingisse uma pedra solta e quebrasse a perna, o que certamente seria fatal e ninguém ali estava disposto a arriscar a vida de suas montarias.

Chase havia adormecido, assim como George, mas Howard permanecia vigilante, a lâmina da espada pronta para investir contra qualquer inimigo, ao menor sinal de ameaça. Seus olhos percorriam a escuridão lá fora, enquanto os homens da guarda seguiam igualmente tensos, pois ladrões eram comuns naquela área, assim como em qualquer bosque de toda a Zerbet, desde o início da crise no reino.

Em certo momento, ele pôde distinguir um rosto através da janela da carruagem, parcialmente oculto pelo tronco de uma velha árvore. Ele mal pôde distinguir a figura, mas sua mente começou a trabalhar ainda mais depressa, tentando prever o que poderia acontecer no momento seguinte. Ele desejou que o comboio se afastasse dali o quanto antes, mas no fundo sabia que não adiantaria muito, pois os salteadores costumavam conhecer muito bem o terreno onde atacavam e geralmente montavam cavalos assim como suas vítimas. Assim poderiam aparecer, roubar o que quisessem e desaparecer em seguida, antes mesmo que os assaltados pudessem reagir.

Como ele esperava, não demorou para que ouvisse um barulho do lado de fora da carruagem e de repente, o veículo parou com um solavanco, como se o cocheiro tivesse sido obrigado a puxar as rédeas. Ele não esperou para ver o que aconteceria: abriu a porta da carruagem e saltou para o lado de fora, na escuridão, guardando a única entrada e, com isso, seu filho e a princesa também.

A primeira coisa que viu foram os soldados desmontando, as armas na mão, sob a luz prateada da Lua. E então ele entendeu para onde todos olhavam: bem à frente na trilha havia um pequeno grupo de homens com roupas de farrapo, e mais outros pareciam surgir em meio à escuridão do bosque de ambos os lados do caminho, os cercando. Dentre eles, Howard reconheceu um dos salteadores como o que tinha visto momentos antes, um sujeito montado em um cavalo de baixa estatura, ao lado de mais três companheiros montados, todos com espadas e adagas nas mãos, apontando-as ameaçadoramente para os guardas reais.

Esse mesmo homem olhou de um lado ao outro e anunciou com uma voz retumbante: “isso é um assalto, não se movam e ninguém se machuca. Queremos só as riquezas que sabemos que vocês levam”.

Howard franziu o cenho e levantou uma sobrancelha. – Talvez vocês devessem procurar em outro lugar. – Começou ele. – Vocês não vão sair daqui vivos se decidirem investir contra nós.

O seu tom de voz era bastante tranquilo, como se ele já tivesse feito algo assim uma dezena de vezes. Atrás dele, dentro da carruagem, ele pôde ouvir vozes sonolentas e imaginou que os dois jovens estavam acordando. “Fiquem dentro da carruagem, fiquem dentro da carruagem...” ele pensava continuamente, enquanto tentava manter a atenção dos salteadores nele.

O homem riu-se, com desprezo, em resposta às suas palavras. – Vocês estão em menor número, não me importa para que nobre vocês trabalham, ou se é para algum mecenas metido, não existe uma versão dessa história que termine com vocês ilesos se decidirem nos atacar. Agora, rapazes...

Com estas palavras, os demais salteadores avançaram, ameaçadoramente, em direção ao comboio e os guardas olhavam de relance para o lorde, à procura de instruções, pois fora Chase, ele era a pessoa de maior autoridade ali. Sua expressão, porém, exibia uma mensagem clara para cada um dos homens: Aguardem meu sinal.

Quando o primeiro inimigo chegou perto o suficiente da carruagem para estar ao alcance da lâmina do sabre que ele carregava, Howard investiu contra ele, e como uma única força, os demais atacaram os salteadores. Os momentos seguintes foram um turbilhão de luta e o som das armas ecoou na floresta.

E Howard não mentira quando dissera o quanto os salteadores estavam correndo perigo em atacar o comboio, pois os guardas reais eram os homens mais bem treinados do reino na luta de espadas e os inimigos feridos corriam aos montes em direção às árvores, em pânico diante da ferocidade dos adversários.

Mas de todos eles, Howard era o que mais assustava. Sua arma girava como um redemoinho da morte, derrubando todo e qualquer inimigo que ousasse chegar perto da carruagem. Seus golpes eram tão precisos que nenhum deles chegou a ferir uma única montaria dos inimigos, somente seus cavaleiros oportunistas.

Por trás da porta, George e Chase olhavam escondidos a cena, fascinados pelas habilidades de Howard. Eles já haviam presenciado o homem treinando, mas nunca o haviam visto em ação. Quando os últimos salteadores correram capengando para entre as árvores, Howard voltou-se para eles, preocupado, sem nenhum arranhão sequer. – Vocês estão bem?

Os dois assentiram, assustados. Só então ele respirou fundo, pediu a um dos guardas que tomasse conta dos jovens e foi ver como os demais oficiais estavam. Felizmente, não havia muitos feridos, apenas um rapaz com um corte num dos braços e outro com arranhões superficiais. Em questão de minutos, eles estavam sendo tratados pelos médicos da equipe e então, se preparavam para retomar a cavalgada.

Não havia corpos no chão da floresta, uma vez que os guardas estavam dispostos apenas a afugentar o grupo de salteadores, mas pequenas gotas de sangue manchavam o solo, deixando evidente a qualquer um que passasse por ali que aquele lugar tinha sido palco de uma luta. Howard não viu a hora de ir embora daquele bosque. O quanto antes chegassem na cidade de Marcrof, melhor seria para eles. Aquelas árvores costumavam ser palco de muitas emboscadas e assim como minutos antes, eles poderiam vir a ter problemas com outras gangues novamente.

A carruagem percorreu a trilha levemente apressada, cercada de perto pela escolta, mas desta vez, não importava o quão tarde era, nem Chase nem George adormeceram até o momento em que os troncos e galhos escuros ficaram para trás, dando lugar a uma planície assolada pelo vento congelante do mar. A princesa e seu melhor amigo respiraram fundo e puderam sentir o cheiro do oceano, o sal no ar... mas o ar era tão frio que Chase sentiu um calafrio no primeiro momento em que a forte brisa atingiu seu rosto, vindo das frestas da porta. Howard abriu sua sacola de viagem, que carregava ao lado no assento, tirou dois longos casacos e os entregou para os jovens, que se encolheram como podiam. Em poucos minutos, logo antes do céu finalmente começar a clarear, eles fecharam os olhos e adormeceram novamente, mas Howard não se deu ao luxo de fazê-lo, pois sabia que não havia um momento de noite naqueles tempos que podiam ser considerados seguros, não importando onde no reino. As pessoas estavam desesperadas, algumas tinham sucumbido à praga, e outras tinham desistido da moralidade para sempre.

 

A carruagem atravessou uma estrada extremamente movimentada, tão ou mais tumultuada que Wansfort. Chase e George olhavam pela janela, curiosos, mas também discretos, enquanto do outro lado centenas de pessoas vendiam frutas, bugigangas, tapetes, carnes, verduras e tudo mais que se podia imaginar. Diversas pessoas abriam caminho por meio da multidão em todas as direções, outras paravam nas barracas para comprar coisas ou tentar ganhar dinheiro com alguns dos jogos mais estranhos possíveis. Havia homens, mulheres, crianças, e muitos deles desviavam o olhar do que estavam fazendo em direção ao grupo recém-chegado, mas não demoraram muito a perder o interesse. Em seus pensamentos, Chase imaginou que os moradores de Marcrof deviam estar acostumados com carruagens, pois lá moravam alguns dos maiores mecenas de Zerbet, e isso certamente seria de grande vantagem para eles, pois não iriam chamar muita a atenção, e tudo que eles não queriam era atenção, afinal Chase e George estavam lá anônimos e Howard não gostava de curiosos em suas missões pelo reino.

- Mantenham a cabeça abaixada. – Sussurrou Howard para os dois. – Mais tarde nós poderemos visitar a cidade se vocês quiserem, desde que usem os mantos que estão levando para cobrir seus rostos, mas antes eu preciso cuidar de uma coisa.

O coração de Chase batia depressa quando a carruagem estacionou, próxima do estábulo de uma estalagem afastada do centro comercial, no topo de uma colina. Howard abriu a porta e deixou que o vento cortante os atingisse os rostos, mas a princesa não parecia mais se importar, porque seus olhos pousavam no azul do oceano bem à sua frente.

- Fiquem aqui até eu voltar, ok? – Instruiu o lorde, se afastando para conversar com o dono da estalagem, enquanto os guardas reais disfarçados desmontavam de seus cavalos, e mesmo assim não demorou para que a jovem pisasse os degraus da carruagem, quase que hipnotizada pela paisagem.

George olhou, sem acreditar, a amiga se afastando e entrou em desespero. – Chase... Chase! Não ouviu o que o meu pai disse? – Disse ele, o mais baixo que pôde para que a princesa pudesse escutar.

Chase, por sua vez, se mantinha oculta pelo veículo, observando atentamente o momento em que todos os guardas reais estariam distraídos... agora!

Ela correu disfarçadamente na direção do que a encantava quando os guardas foram conversar com os cuidadores. George olhou incrédulo a menina se afastar, sem ao menos ser percebida pelos homens que juraram protegê-la. Internamente, porém, ele sorriu. “Ela já deve estar acostumada a fazer isso, imagino eu”. Revirou os olhos e correu em seu encalço. No entanto, não teve a mesma sorte que Chase e um dos guardas acabou por vê-lo se afastando, e por consequência, também viu Chase.

George a alcançou bem no momento que logo atrás um dos soldados gritava seus nomes, mas naquele momento aquilo era muito distante, muito sem importância.

Eles nunca tinham visto o mar antes. Obviamente tinham ouvido histórias, conhecido belíssimas imagens do mar em livros de iluminuras da biblioteca do palácio, mas em comparação com a verdadeira paisagem, cada desenho que os dois um dia haviam apreciado parecia pálido e superficial. Não que as iluminuras fossem feias, elas eram maravilhosas, mas simplesmente não podiam se comparar com a realidade.

Bem à frente dos dois, a colina descia levemente e então de forma mais íngreme, onde a grama perdia lugar para a rocha nua. O penhasco descia dezenas de metros até uma faixa de areia estreita que era gentilmente banhada por águas tranquilas de cor esmeralda. O brilho do sol parecia ecoar nos reflexos das preguiçosas ondas. Ainda era manhã e a luminosidade era agradável, combinava com o vento frio, e apesar das temperaturas baixas eles se sentiam bem, havia algo como que mágico naquele lugar, tão belo que aqueceu o coração dos dois naqueles poucos instantes.

Até que o guarda finalmente os alcançou. O rapaz parecia cansado, devia ter corrido exaltado na direção deles, afinal eram dois adolescentes perigosamente perto de um penhasco... – Senhor George, alteza Deise... por favor, venham comigo... é perigoso vocês estarem do lado de fora sem supervisão.

George se deixou levar, mas Chase ainda desviava seus olhos para a praia lá embaixo e para o agradável e congelante mar do Oeste. Ela continuou fazendo isso, mesmo de dentro da carruagem novamente, por muito tempo, até que Howard finalmente retornou e buscou as bagagens, com um sorriso no rosto. Dessa vez havia guardas reais na entrada do veículo para prevenir que Chase fizesse alguma outra besteira. – Podemos entrar, já negociei o preço para os próximos dias. Dizem que essa estalagem é a melhor da região. Não é um palácio, mas vocês vão descobrir que nada é como o palácio aqui fora, principalmente agora... – Ele disse essas últimas palavras com pesar, de tal forma que seu sorriso vacilou por alguns segundos, mas tão logo se recuperou, pediu que os guardas o ajudassem a carregar a bagagem e então deixaram a carruagem.

 

- Esse lugar é fantástico! – Disse Chase pela décima vez, enquanto puxava George por entre a multidão.

Ela nunca se sentira tão viva antes. As pessoas passavam por ela, sem ao menos a reparar e ela sentia-se agradecida por isso. Sem privilégios afinal, ela poderia passear por entre seu povo sem que eles se ajoelhassem... ufa! Por baixo do capuz que ocultava seu rosto, abria-se um sorriso de orelha a orelha.

Mas eles não estavam desprotegidos, Howard havia prometido proteção à princesa e ele mesmo jamais deixaria seu próprio filho sozinho naquele lugar, por isso ele vigiava por perto, seu olhar pousado constantemente nas duas pequenas figuras. Mais dois guardas os acompanhavam, um tão perto deles que tornava quase óbvio que estava tomando conta dos dois jovens, mas não era algo incomum afinal. Em lugares muito movimentados como aqueles, as crianças e mesmo alguns jovens seguiam normalmente com um adulto responsável para cuidar deles e guiar suas decisões. Era fácil se perder e ainda mais fácil se encantar com os jogos e acabar devendo dinheiro para algum vigarista.

Mas Chase lidava com a situação com empolgação, ainda mais que George, e os dois iam de barraca em barraca, só para ver o que os outros vendiam e ouvir as vozes das feiras. Uma gentil moça de uma barraca de frutas virou-se para os dois e abriu um sorriso com os dentes a mostra, apontando para as lindas maçãs que ela deixava à mostra para venda e, também, os fartos cachos de uva repletos das deliciosas frutas roxas. Chase suspirou somente de vê-los e todas as outras.

- Estou vendo que gostam de frutas! – Disse a moça, bem-humorada. Então virou-se para a barraca, pegou duas unidades do que parecia a maior ameixa que Chase e George já haviam visto e as entregou. – Vamos, comam! É de graça, por conta da casa.

Chase hesitou, mas pegou a bela fruta das mãos da senhora e a mordeu com vontade. O suco lhe sujou os lábios de vermelho, mas ela não se importou. Estava deliciosa. George fez o mesmo e suspirou de felicidade. Era fresca e mais doce do que qualquer ameixa que eles jamais haviam comido.

A moça, parecendo ler seus pensamentos, riu-se. – Elas são bastante especiais. Colho da minha plantação aqui em Marcrof, são cultivadas com bastante carinho e felizmente ainda não as perdi por conta da Doença do Reino, muito embora eu tenha alguns colegas da feira que estão passando dificuldades e... vocês não são daqui, são? – Indagou, tentando enxergar por trás dos capuzes. – Nunca os vi antes. Onde estão seus pais?

Antes que qualquer um dos dois pudesse responder, Howard surgiu na multidão. Ele sabia se manter discreto, mas prestava atenção em cada passo que os dois amigos faziam, não importando qual fosse. Apertando a mão da vendedora, o lorde se pôs entre seus protegidos e ela. Ele não usava um manto como os dois adolescentes para esconder sua identidade, mas havia amarrado o cabelo e deixado a barba crescer e isso era o suficiente para esconder sua identidade da grande maioria das pessoas. – Olá, me chamo Gulliver, desculpe-me se minhas crianças te causaram algum transtorno, se precisar pagarei o que for necessário.

A moça olhou para ele com simpatia, mas balançou a cabeça negativamente. – Não é necessário, senhor. Essas foram por conta da casa. Se me permitem... – Ela se aproximou um pouco dos três, e abaixou a voz até quase um sussurro, que mal pôde ser ouvido em meio ao barulho da multidão ao redor. – Vocês parecem ser pessoas simpáticas, tomem cuidado por aí, existem pessoas em Marcrof que sabem se aproveitar de viajantes. Não confiem.

George sentiu um calafrio e olhou ao redor desconfiado. Pareceu que só naquele momento ele se deu conta do perigo latente que pairava sobre eles ao seguirem por entre tantas pessoas. Chase sentiu o mesmo. De repente era como se mil olhos estivessem virados para eles, olhos ocultos dentre tantas pessoas, em todas as direções. Olhos à espreita, aguardando pela oportunidade ideal para atacar os viajantes desprevenidos.

Mas Howard não pareceu sentir-se mal com as palavras da vendedora. Ou se sentiu algo, não aparentou, no lugar da preocupação seu rosto exibiu um sorriso de agradecimento. – Obrigado pelo aviso, ficaremos atentos. – E então ele se despediu, cordialmente, da moça, e guiou os dois jovens para longe. Quando se dirigiu para os dois, sua voz era séria. – Não se afastem muito, ela tem razão. Existem salteadores e vigaristas em feiras como essas, não devia ter trazido vocês aqui.

Dessa vez, eles não contestaram as palavras do lorde. Mesmo ao longe, quando já haviam se afastado do núcleo de movimentação, eles ainda podiam sentir os pelos das nucas se arrepiarem com a sensação de ainda estarem sendo observados...

 

Naquela noite, na estalagem, eles se deliciaram com os guteau permecets da pequena taverna em seu anexo. Os guardas disfarçados ocupavam a maior parte das mesas, mas conversavam baixo, para que nenhum funcionário pudesse captar informação que não devesse. Alguns outros clientes, no entanto, insistiam em falar tão alto que Chase mal conseguia ouvir os próprios pensamentos. As risadas eram exageradas, resultado do álcool, ela imaginava. O bom daquilo era que ninguém realmente prestava muita atenção nos novos e numerosos hóspedes, uma vez que a bebida entorpecia seus pensamentos. Provavelmente, muitos deles nem tinham se dado conta de Chase, George e os outros. Uma palavra, no entanto, insistia em perdurar em cada final de frase dos mais embriagados: Lhoary.

“Então os pesqueiros foram arrastados pela tempestade, até muito perto daquelas pedras, na Praia da Morte, e os Lhoary estavam lá, esperando por eles...” disse um, quase gritando. Outro riu-se, um tanto alterado: “E como você sabe disso? Porque se eles encontraram com os Lhoary, eles não viveram para contar a história”.

O primeiro, que narrava os acontecimentos, estava com o rosto vermelho e Chase não sabia se era de irritação pelas palavras do companheiro ou se era por conta do excesso de vinho. Provavelmente, eram os dois.

“Alguns conseguiram pegar um bote e chegaram à costa!”, exclamou ele e outro homem, em uma mesa mais afastada, protestou: “Mentira! Como nunca ouvi falar disso?”.

A conversa continuou até depois que o grupo de Wansfort deixasse o aposento para dormir, mas a palavra Lhoary persistia nos pensamentos da princesa. Não que ela nunca tivesse ouvido sobre eles, havia livros inteiros sobre aquele povo antigo na biblioteca do palácio, mas ela acreditava que eles tinham sido extintos depois do fim da Era das Trevas.

A imagem aterradora de um Lhoary era, definitivamente, a pior que poderia permear os pesadelos dos pescadores de Marcrof, e de fato tinham sido eles os mais prejudicados pelos ataques incessantes daqueles inimigos cruéis em épocas tão distantes. Sua pele verde musgo era perfeita para caçar, dizia-se que um Lhoary poderia ficar imóvel por dias no mesmo lugar na vegetação, de tal forma que se tornava impossível percebê-lo até ser tarde demais. Hordas dessas criaturas haviam invadido o oeste de Zerbet durante os momentos sombrios que cessaram no final do reinado de seu avô, mas as marcas daquela época cruel haviam perpetuado na história, e pelo visto, os Lhoary não faziam somente parte da história, mas ainda aterrorizavam os que tinham o azar de se aproximar de sua ilha.

Ao se deitar naquela noite, seu sono se recusava a chegar, o medo dos Lhoary permeava seus pensamentos, acrescido da ameaça constante dos salteadores e, bem no fundo, ela começava a se arrepender de ter insistido em ir naquela missão. Mas então ela riu de si mesma, incrédula. – Você, Chase, se arrependendo de algo como isso? Não... onde está seu espírito de aventura???

No entanto, ela ainda se manteve acordada, os medos à espreita, prontos para invadirem seus pesadelos recorrentes.

 

Somente mais um dia, mais um dia e eles estariam a caminho de Wansfort novamente. De repente Marcrof não parecia um lugar tão simpático quanto ela pensara de início, e embora ela tivesse adorado estar em um lugar tão longe do palácio, rodeada de seu povo, um pressentimento ruim lhe perseguia sem cessar, mesmo ela não tendo certeza do que era.

George, no entanto, ainda parecia bastante disposto a passar alguns dias na cidade porto. – Meu pai vai visitar Angus Fergursan essa manhã, ele espera que estejamos de volta à capital amanhã já, bem cedo, com o problema resolvido, seja ele qual for... – Disse o amigo, enquanto desciam a escada, seguidos de perto por três guardas reais.

Chase não respondeu, apenas assentiu. Eles dois não tinham detalhes sobre a missão de Sir Howard, somente sabiam que tinha relação com aquele tal de Angus Fergursan, o governador da cidade de Marcrof. No dia anterior, ela soubera que dois guardas haviam, a pedido de Howard, feito a pequena viagem até a casa do homem, para notificá-lo da presença do lorde, pois era de praxe que um nobre em missão fosse anunciado o quão cedo possível, quando se tratava de uma situação relacionada com algum assunto que deveria ser tratado com o responsável pelas cidades, ou mesmo pelos condados. Internamente, ela torcia para que tudo corresse como planejado, mas ainda assim, aquela sensação persistia, como se algo estivesse para dar errado.

Eles desceram até o térreo e se dirigiram à taverna para tomar um café da manhã, depois George pretendia visitar o porto e Chase não queria desanimá-lo ao dizer que não iria com ele, então não pôde recusar o convite, mas quando eles se levantaram da mesa e atravessaram a porta para o ar livre, Howard os esperava, de braços cruzados, enquanto os demais guardas montavam em seus cavalos depressa.

George abaixou a cabeça, pesaroso. – O senhor quer que a gente vá com você.

Howard assentiu devagar. – Sim filho, eu acho melhor que vocês fiquem perto de mim, Marcrof está mais perigosa do que nunca, agora a pouco, me veio ao conhecimento que dois homens foram presos na cidade por incitarem uma briga e, pelo que eu tenho ouvido por aí, essas coisas estão ficando cada vez mais frequentes.

- Mas eu e a Chase... quer dizer... eu e a alteza real iríamos até o porto, ver os navios, os guardas iriam conosco. Não estaríamos em perigo... – Seu olhar era quase suplicante e Chase entendia plenamente o amigo. George nunca tinha visto um navio de verdade, muito embora tivesse, desde pequeno, um barquinho de madeira que, ela lembrava, o menino levava para todo lugar. Agora ele já não brincava com barcos de madeira, mas a curiosidade persistia e ela mesma nunca tinha visto um antes, de verdade.

- George eu... eu acho que concordo com seu pai. Com ele e um grupo de guardas, vai ser mais seguro para nós. – Disse ela, devagar, medindo as palavras.

Até Howard olhou para ela, surpreso. Não era muito comum que Chase concordasse com o que as pessoas diziam, ela gostava de criar sua própria opinião sobre as coisas. No entanto, algo dentro dela parecia repentinamente querer acompanhar Sir Howard naquela visita ao tal do Fergursan, muito embora ela não conseguisse explicar, por mais que quisesse.

Acima de tudo, além de sua rebeldia, Chase era uma garota que costumava seguir os próprios instintos, mesmo que isso significasse perder a oportunidade de conhecer mais do Oeste.

George encarou Chase mais uma vez, de relance, e então, assentiu devagar. – Vamos com o senhor, pai.

 

A carruagem parou no topo de uma outra colina, a poucos quilômetros da cidade de Marcrof. A viagem não tinha sido longa, mas tinha sido silenciosa, pois Howard estava pensativo com algo e George não parecia muito à vontade perdendo a oportunidade de conhecer o cais.

Além disso, ele evitava virar seu olhar para a amiga, claramente o jovem estava um tanto ressentido por ela ter aceitado o pedido do pai e George sabia muito bem como demonstrar seus sentimentos, Chase o conhecia o suficiente para saber isso. Ela também conhecia a volatilidade desses sentimentos e não tinha dúvidas de que essa situação não demoraria 30 minutos para desaparecer por completo, porque o amigo nunca se mantinha irritado por muito tempo com alguém. Então, simplesmente, decidiu respeitar sua opinião e deixá-lo com seus pensamentos, o que tornou a viagem curta um tanto monótona demais...

Mas finalmente eles haviam alcançado seu destino e diante deles, no topo da colina, se erguia uma imensa mansão. As paredes eram brancas e brilhavam com a luz do sol, como o mais límpido dos mármores e as incontáveis janelas lembravam a Chase grandes e vigilantes olhos. Dois imensos e elaborados pilares pareciam sustentar a parte principal da fachada e entre eles havia uma porta de madeira de dois metros de altura entreaberta e do lado de fora, esperavam dois sujeitos de índole duvidosa: o primeiro tinha a cabeça raspada e braços musculosos, como os remadores do porto que Chase vira uma vez ou outra dentre a multidão do centro de Marcrof, mas diferentemente deles, seu rosto parecia exibir tamanha animosidade para os recém-chegados que a princesa sentiu um calafrio só de olhar para seus olhos, pela janela da carruagem.

Já o segundo, ao seu lado, embora não fosse forte como ele, possuía seu jeito de se mostrar ainda mais assustador... era um homem alto, quase tão alto quanto a porta de entrada da casa, vestindo uma roupa de gala branca como a pedra da qual tinha sido feita a mansão e que Chase agora reconhecia como sendo mesmo mármore. Os sapatos de couro estavam recém limpos, e o cabelo comprido, preso em um rabo de cavalo, tinha um corte quase perfeito. Chase o observou atentamente e teve certeza de que se tratava do governador de Marcrof, o homem que havia sido motivo suficiente para trazer Sir Howard Staad, o líder do conselho de lordes e provavelmente o homem mais influente do reino para aquela parte do condado, tão longe da capital. A princesa, de imediato, imaginou não pela primeira vez, que motivo seria grande o suficiente para causar aquela missão... Sem dúvida Fergursan se vestia como um rei, ou como achava que um rei se vestiria, denotando seu status social a quem quer que olhasse. O corpo era magro e cabia perfeitamente nas roupas, as mãos estavam repletas de anéis com pedras preciosas e no braço havia um bracelete de ouro tão brilhante que ofuscava a visão daqueles que olhavam diretamente para ele. O rosto era sereno, como se ele não tivesse com o que se preocupar, mas o olhar... Desde muito cedo, Chase aprendera a ler gestos e decifrar olhares, era como um talento natural para ela que Vitória insistia em dizer que seria uma poderosa ferramenta para a princesa no futuro, quando tivesse que assumir o título da mãe. Aquele homem, porém, não exibia nada no olhar, absolutamente nada, como se tivesse treinado incessantemente para não demonstrar seus verdadeiros sentimentos.

E um homem que conseguiria fazer isso, era potencialmente muito mais perigoso do que um simples sujeito musculoso e mal encarado.

 

Howard se virou lentamente para George e Chase, enquanto se preparava para sair da carruagem. Seus lábios pronunciavam palavras para os jovens, enquanto seu olhar pousava continuamente nos dois homens próximos da porta, a alguns metros deles. Chase podia ouvir os guardas desmontando de seus cavalos e pôde imaginar que, assim como o lorde, nenhum deles confiava realmente naqueles sujeitos.

- Fiquem na carruagem, a qualquer custo, ouviram? Esperem eu retornar, é melhor que Fergursan não saiba que a princesa e o filho de um lorde estão aqui comigo. Escondam-se e não falem nada em voz alta enquanto eu estiver fora. Alguns dos nossos guardas vão aguardar do lado de fora para protegê-los, de qualquer forma.

- Mas e se o senhor precisar de ajuda? – Perguntou George, franzindo o cenho e virando-se para o rosto sem expressão do homem alto que aguardava a presença do lorde.

Howard abriu um sorriso tranquilizador para os dois. – Terei os guardas reais prontos para agir ao meu sinal. Nada vai dar errado. Seremos diplomáticos, Fergursan não teria coragem de enfrentar a coroa e agora que eu descobri sua farsa... bom, fiquem tranquilos, tudo bem?

Chase nada disse, apenas retribuiu o sorriso do homem e assentiu depressa. George acabou também por desistir e deixou que seu pai se afastasse da carruagem e fosse de encontro à mansão.

- Ele vai ficar bem. – Sussurrou a princesa, mais para convencer a si mesma do que a George. “Espero”.

 

Howard mantinha o rosto neutro, como tinha sido treinado para fazer durante uma reunião diplomática, mas seu coração batia depressa no peito quando encontrou Fergursan e seu comparsa mal encarado, Ilius Baltran. Ele conhecia muito bem a reputação de Baltran, assim como a de seus aliados, os homens que, Howard sabia muito bem, estavam à espreita, esperando ordens sinistras de seu líder para atacar.

Suas mãos suavam quando o rosto de Fergursan expôs um leve sorriso confiante, seguido de uma breve reverência. – É uma honra recebê-lo Sir Howard, embora ainda não esteja muito claro o motivo da sua visita. Vejo que trouxe muitos soldados consigo, receio que não seja necessário. As terras de Marcrof estão mais seguras a cada dia, os salteadores sem dúvida não estão conseguindo lidar com minhas tropas.

Howard retribuiu o sorriso. – São protocolos seguidos à risca em todas as viagens diplomáticas, e acreditei necessário. – “E continuo acreditando”, pensou ele, olhando de relance para Ilius. Como Fergursan poderia ser tão mentiroso a ponto de indicar a ele que Marcrof está segura, graças a ele? Mentalmente, ele desejou poder prendê-lo ali mesmo, embora ele soubesse que não deveria, ainda. Com o rosto ainda exibindo um sorriso, ele continuou mantendo o tom de voz. – Você e eu sabemos que a segurança de Marcrof não é de responsabilidade dos governadores de suas cidades, mas de meu velho amigo, lorde Ronan. Ele lhe pediu ajuda com a proteção das estradas do condado? Pois não vi nenhum dos seus soldados no caminho para cá? Pelo contrário, fomos abordados por salteadores.

Fergursan indicou que o acompanhasse enquanto entrava rapidamente no casarão. Howard o seguiu com cautela, sentindo a presença de Ilius alguns passos atrás dele. O governador replicou, com calma e um leve tom arrogante em cada palavra. – E o senhor sabe muito bem que Ronan já não pode cuidar de seu condado há muitos anos. Os outros governadores estão ficando apreensivos e um tanto irritados com o lorde. Eu, é claro, estive sempre ao lado dele, como é meu dever, mas receio que seja só uma questão de tempo para... – Ele parou de falar e virou rapidamente o rosto na direção do lorde.

- Uma questão de tempo para o que, governador? Posso saber?

- Você sabe... para que os outros se revoltem. Eu tentei persuadi-los a desistir da ideia, mas acredito que não reste muito tempo para Sir Ronan no cargo.

Howard sentiu um calafrio. Ele conseguia sentir o desprezo que Fergursan deixava escapar sempre que dizia o nome do lorde de Marcrof. “Sem dúvidas, se existe uma revolta iminente, ele é o principal responsável por incitá-la, ao contrário do que ele diz”, pensou o lorde, sentindo o olhar frio de Ilius fixamente nele. Resistindo a olhar para trás, continuou calmamente. – Se realmente existe essa pretensão de revolta, é responsabilidade sua reportar à coroa e ao conselho de lordes, já que é claramente aliado de Ronan. Mas sua informação foi anotada e eu cuidarei para que isso não aconteça. Quanto à minha visita, saiba que é um assunto que vim tratar pessoalmente pois senti que precisava olhar com meus próprios olhos, e o que eu descobri neste tempo no condado só confirmou o que me tinha sido informado.

O governador olhou para ele, por um instante, interessado e em seguida, deu de ombros, conduzindo-o por uma grande sala de estar até um corredor largo e, então a uma porta cuidadosamente entalhada com desenhos de folhas, árvores e soldados, com o brasão real ao lado do símbolo do condado de Marcrof. Fergursan acenou para a maçaneta e indicou que Howard entrasse.

O lorde adentrou o aposento frio e olhou ao redor, em busca de sinais ocultos de ameaça, mas não havia nenhum. A pequena sala tinha as paredes e o teto pintados de marrom claro, o que deixava a mesa de mogno no seu centro quase invisível à primeira vista. Ao redor da mesa havia seis cadeiras da mesma cor e nas duas paredes mais estreitas estavam armários repletos de prateleiras com livros empoeirados que Howard tinha certeza de que Fergursan nunca tinha lido na vida.

O governador se sentou ao lado de Ilius e indicou ao recém chegado que se sentasse também. – Aqui podemos conversar sem que os empregados ouçam, tenho certeza de que é um assunto muito sério que merece um certo nível de discrição.

Howard assentiu devagar, avaliando a situação: dois adversários em um aposento apertado, longe o suficiente da entrada para que os seus soldados o ouvissem caso fosse atacado de surpresa. Não era uma situação muito favorável e ele imaginava que tinha sido esse o objetivo. O governador imaginava que poderia silenciar Howard de uma vez se ele tivesse realmente descoberto o que ele estava tramando. O nobre fechou os olhos, lembrando-se da conversa que tinha tido com a rainha, no dia anterior à viagem:

“Mas, majestade... ele é um criminoso, deveríamos prendê-lo e levá-lo de Marcrof antes que o sujeito cause mais danos.”

“Howard, eu entendo seu ponto de vista, mas não podemos prendê-lo sem provas reais e por enquanto só temos indícios e rumores. Você precisa fazê-lo falar, e não existe ninguém melhor para este trabalho do que você.”

E ele sabia que cada uma das palavras da rainha Vitória estava repleta de razão. Nem mesmo a palavra do povo poderia ser o suficiente se não houvesse provas das alegações. Ele também sabia que a diplomacia era a chave para convencer Fergursan a condenar a si mesmo.

Assim, ele permaneceria neutro, esperando a hora certa. Ela iria chegar, se ele fizesse as perguntas certas. E se ele não morresse no processo.

- E então, Sir Howard?

O lorde piscou, afastando os pensamentos, tendo plena consciência de sua espada presa na cintura e da lâmina inimiga, embainhada no cinturão de ferro de Ilius.

- Em Wansfort ouvimos boatos de impostos abusivos na cidade de Marcrof e redondezas. De início, não imaginávamos que poderia ser verdade, mas os boatos eram numerosos demais para que ignorássemos.

O governador ouvia tudo com especial atenção, parecendo totalmente surpreso com a notícia. Howard continuou a falar, ignorando o cinismo de seu anfitrião. – Decidi vir para cá eu mesmo, em busca de evidências sobre isso e realmente, depois de conversar com algumas pessoas na estalagem onde ficamos hospedados, levantei depoimentos o suficiente para demonstrar que os impostos gradualmente aumentaram nos últimos quatro anos neste condado, e agora são mais do que o dobro do inicialmente estipulado. Outra coisa estranha, governador, é que não há registro de repasse deste dinheiro para os cofres da capital, estranho, não é mesmo?

Fergursan pigarreou. Ilius piscou, olhou para seu patrão e então, de volta para Howard, que internamente sorria. “Estou conseguindo fazer com que fiquem preocupados”.

- Realmente muito estranho...  mas posso garantir que esse dinheiro não tem sido recolhido pelo meu pessoal, jamais iria reter dinheiro dos impostos da população, nem mesmo nenhum dos meus soldados, que tipo de pessoa mal caráter iria fazer uma coisa dessas? – O governador parecia chocado, mas a máscara de surpresa escondia o medo que ele agora transparecia, mesmo depois de ter treinado tanto tempo para esconder suas emoções de olhos alheios. – O senhor possui tantas evidências assim? Consegue imaginar quem é o responsável?

- O povo diz que é você. – Disse Howard, finalmente, dando de ombros. – O que me diz disso?

- Certamente, não fui eu, disso você pode ter certeza. Eu jamais mentiria para você ou para a coroa, mas talvez alguém esteja querendo se fazer passar por mim para receber impostos do povo desesperado e com fome!

- Imagino que seja realmente uma pessoa terrível.

- Realmente! Certamente!

Seguiu-se um longo silêncio, até que Howard Staad, retomasse a conversa, suspirando profundamente, como que desapontado com algo ou alguém. – Eu realmente esperava que você estivesse por trás disso, mas acho que tem razão, alguém mais deve estar se aproveitando dos impostos para lucrar com a desgraça alheia.

Fergursan abriu um sorriso torto, se esticando na cadeira de madeira. – Imagino que sim, o senhor gostaria de poder voltar para a capital com um prisioneiro para resolver essa situação, não é mesmo? Mas não precisa se preocupar, pois vou redobrar a vigilância na cidade em busca desses farsantes, logo os capturaremos e enviaremos para as celas de Wansfort.

- Sim, realmente uma pena. Estava para fazer uma verdadeira proposta para o autor desses crimes, infelizmente, como não o achei, terei que retornar para a capital em breve e somente sinto pena por ele, seja lá quem for, porque aqueles que vierem no meu lugar serão muito menos complacentes do que eu, e menos dispostos a colaborar. – Howard levantou-se devagar, com o rosto sombrio e se afastou da mesa, em direção à porta. – Obrigado por me receberem, eu sei o caminho de volta para o salão principal.

Ele já ia girando a maçaneta quando Fergursan foi ao seu encontro, com um olhar cauteloso. – Mas, senhor, tão cedo? Nem servimos o almoço ainda. Sem dúvidas você e seus soldados são muito bem vindos...

- Sim, claro, mas já vamos indo.

Antes que ele prosseguisse, o governador segurou seu braço, e falou baixo, de forma que se tornou impossível ouvir qualquer coisa, mesmo do outro lado do aposento, quiçá do outro lado da porta, caso houvesse algum empregado fofoqueiro por perto. – E se eu dissesse que eu sei quem é o responsável por isso?

- Bom, eu certamente ficaria muito feliz. Acho que a proposta que tenho para dar vai ser benéfica para ambos os lados.

- Pois bem... o que o senhor pretende propor a ele?

Howard disse, rindo-se. – Isso, meu caro, eu terei de informar somente a ele.

- Sou eu.

- Você o quê?

- Não existe farsante, eu mesmo me certifiquei de aumentar os impostos. – Ele olhou ao redor, para as paredes do quarto apertado, orgulhoso. Ilius o encarou, preocupado, mas o governador não lhe deu atenção. – Não há nenhum mal em receber alguma compensação significativa desse povo por meus serviços, afinal do percentual que é mantido para manutenção das cidades, não é muito que me resta.

- É mais do que o suficiente para manter as tropas dos governadores em pleno funcionamento, e garantir a manutenção das operações conjuntas com o lorde de Marcrof, disso você pode ter certeza. – Replicou, Howard, cerrando os punhos.

- Você está me acusando agora?? Pensei que estaria do meu lado.

Seguiu-se um momento de silêncio, mas Howard respirou fundo devagar. – Tem razão, perdão. Me ocorre que não são muitos aqueles que tem conhecimento sobre essa sua... atividade. E isso poderá continuar assim, se descobrirmos um modo de colaborarmos.

Fergursan estreitou os olhos, enquanto eles voltavam a se sentar. – Prossiga, por favor.

- Bom, você sabe o quanto sou influente na realeza. A rainha irá acreditar no que eu falar para ela e não prestaria mais tanta atenção à Marcrof. Eu por exemplo, poderia alegar ter resolvido a situação aqui, descoberto que somente se tratava de um mal entendido, e ela iria aceitar essas palavras, ela e o restante do conselho de lordes. Suas preocupações quanto à capital chegariam ao fim.

- Certamente, você tem esse poder, mas algo assim iria requerer uma recompensa de alto valor... o que você aceitaria em troca do seu silêncio?

Howard sorriu internamente. – É sobre isso que eu quero conversar. – Ele virou a cabeça para Ilius. – Tem certeza de que confia neste homem para ouvir o que tenho para falar? Afinal, conheço muito bem a história de Ilius Baltran, filho do mercenário Carau Baltran e neto de Lukan Baltran, o terrível pirata que conspirou com os Lhoarys para invadir Zerbet.

O homem de cabeça raspada fez menção de se levantar, a mão no punho da espada, pronto para atacar, mas Fergursan segurou seu ombro para impedi-lo. – Calma Ilius, tenho certeza de que Sir Howard somente está preocupado que as palavras nesta sala se espalhem, imagino que não seria bom para nenhum de nós, correto?

O lorde assentiu depressa.

- Pois bem. – Continuou Angus Fergursan, calmamente. – Meu guarda é extremamente fiel, ele não dirá uma palavra.

- Perfeito. O que eu quero em troca... talvez um percentual do que você recebe e não repassa à capital. 30% do valor, que tal?

- 30%... assim você vai me fazer falir! Aceitável seriam 15%.

- Você não tem muita escolha, Angus. Se eu não receber os 30%, voltarei para a rainha com você, preso.

- E o que me impede de mandar que te matem aqui mesmo, Sir Howard? – Indagou o governador, levantando uma sobrancelha. Ilius abriu um sorriso perverso.

- Você sabe muito bem o que. Se eu não voltar, meus guardas ficarão preocupados. Certamente, a rainha será avisada e em questão de dias vocês estarão cercados por um batalhão da guarda real. Detestaria que isso acontecesse. E você ainda deve estar mensurando o quão perigoso seria atacar meus guardas, não é mesmo? Tenho certeza de que seus subordinados, os aliados de seu amigo Ilius, estão observando meu grupo no lado de fora do casarão, esperando por ordens... Saiba que se eles não retornarem, o resultado será o mesmo. A escolha é sua... perder 30% do seu saque mensal, ou perder todo o dinheiro de uma vez.

O silêncio tomou o quarto novamente, mas Fergursan acabou por assentir, sério, apertando a mão do nobre. – Você é um bom negociador, não é mesmo? Concordo com a sua proposta. Você receberá sua quantia antes de deixar o meu condado.

- Eu gostaria de ver a quantia agora, se não se importa. – As palavras de Howard Staad eram despreocupadas à primeira vista, mas ocultavam um tom de ordem. Fergursan conhecia a reputação de Howard e detestaria ter que enfrentá-lo em uma batalha corpo a corpo e ele, afinal, não tinha muita escolha.

O governador se levantou com um suspiro e acompanhou seu visitante para fora do quarto, Ilius logo atrás, seguiram por outro corredor e mais outro... até finalmente chegarem em uma porta de madeira um pouco maior do que as demais e o que havia no aposento do outro lado fez Howard piscar sem acreditar. Tratava-se de um amplo quarto cheio até quase o teto com todo o tipo de coisa valiosa: desde joias até móveis de madeira nobre, havia pratos e talheres de prata e muitas moedas douradas e prateadas, e dentre tanta riqueza havia também outros objetos mais humildes, como arados e botas...

Mais uma vez, Howard cerrou os punhos, disfarçadamente, imaginando de onde teriam vindo todas aquelas coisas. “O que sobrou para o povo depois desses saques? Eles tiveram que entregar tudo de mais valor para poder pagar o exigido por Fergursan e seus homens!”, pensou ele, e um ódio irracional invadiu sua mente. A espada estava tão próxima... talvez se ele atacasse agora, inesperadamente, poderia derrotar Ilius e prender Angus de imediato, e aquele teatro teria fim, bem como o sofrimento do povo. Os pertences roubados à sua frente eram a prova do crime de Fergursan e ele teria que pagar pelo que fez.

Ele, porém, se lembrou dos soldados do lado de fora, de seu filho e da princesa. Ele precisava manter a segurança deles e prender o homem dentro de sua casa poderia alertar os seus empregados e fazê-los atacar, o que certamente não traria resultados bons para nenhum dos lados. Ele simplesmente assentiu, parecendo satisfeito com o que estava vendo e voltou-se para os outros dois homens. – Perfeito, você possui algum registro de tudo que tem aqui?

- Claro, nós mantemos todas as informações atualizadas, não queremos que nada suma sem nosso conhecimento.

- Ótimo, vou precisar desses registros para sabermos o valor de cada item, assim poderei saber quando chegarmos no meu 30%.

- Claro... Ilius, pode chamar o escrivão por favor? E peça para trazer o livro de registros de propriedades. Temos muito trabalho pela frente.

 

O governador indagou o motivo do lorde exigir não somente moedas de ouro, mas também joias, botas de couro, cintos de bronze e outras quinquilharias, mas Howard simplesmente deu de ombros. – Eu gostei desses itens, eles fazem parte do seu saque, não fazem?

- Sim, mas...

- Então eu tenho direito de escolher alguns deles para levar comigo.

E assim a escolha dos itens se prolongou por mais de duas horas. Quando finalmente, tudo foi selecionado, Fergursan mandou que alguns de seus subordinados colocassem tudo em sacos de couro e levassem para fora da mansão, mas receou quando lembrou-se dos soldados do lorde, esperando perto de seus cavalos. Howard o tranquilizou antes mesmo de dizer uma palavra sobre o assunto, como se tivesse lido sua mente.

- Não se preocupe, meus oficiais não fazem perguntas, eles ficarão felizes, achando que a situação em Marcrof se resolveu e não se importarão com as sacolas que levaremos.

- Então, está tudo bem. Ilius, ajude os outros com a carga, por favor.

O homem de cabeça raspada resmungou, olhando com cara de poucos amigos para o nobre ao lado do governador e assentiu, obediente, atravessando a porta que levava ao lado de fora do casarão. Howard timidamente guiou Angus Fergursan para fora também, enquanto conversavam sobre a manutenção do trato quanto aos meses seguintes.

E foi então que as coisas deram... errado. Muito errado.

George e Chase, escondidos na carruagem, observaram aliviados quando o lorde reapareceu depois de horas demoradas e preocupantes, enquanto Ilius e outros empregados do governador levavam gigantescas sacolas em direção aos cavalos de carga. Os guardas olharam desconfiados para a bagagem extra, parecendo surpresos, e buscaram o olhar de seu superior, procurando orientação. Howard somente assentiu, tranquilizador e então os oficiais auxiliaram os recém chegados a amarrar bem o tesouro oculto para que não caísse na estrada de volta para a capital. Secretamente, todo o grupo de oficiais já tinha conhecimento da estratégia do lorde logo quando haviam deixado Wansfort. Tudo tinha sido cuidadosamente explicado e revisado para que não houvesse surpresas desagradáveis.

- O que serão essas sacolas? O que será que tem dentro? – Indagou baixinho George, curioso, olhando pela janela da carruagem. Chase o puxou para que se afastasse da abertura.

- Fique abaixado, quer que te vejam? – Cochichou ela.

Simultaneamente, o oficial de mais alta patente se aproximava furtivamente com mais dois soldados, por entre os cavalos, em direção ao governador e ao lorde. Eles já tinham identificado todas as sentinelas nas janelas do casarão, com as flechas apontadas, cuidadosamente ocultas por volumosas cortinas, e agora se esgueiravam por um caminho que acreditavam ser ponto cego dos inimigos. Fergursan estava muito ocupado conversando com Howard para notar a aproximação e Ilius ainda cuidava das sacolas de tesouro quando o lorde casualmente virou-se na direção do homem de cabeça raspada, constatando que tudo já estava preparado para a viagem e que o criminoso e os demais subordinados já retornavam. Só faltava um pequeno detalhe... Angus Fergursan, o arquiteto daquele crime vil.

Como um raio e sem dar o menor aviso, Sir Howard desembainhou a espada e a apontou para o governador. Imediatamente, o grupo de oficiais que vinha se aproximando sorrateiramente cercou o criminoso, armas em punho. O homem sentiu a ponta da lâmina tocando seu pescoço, perto demais para que ele tentasse qualquer coisa... mas ele ainda tinha os arqueiros, ocultos nas janelas da mansão! Eles certamente acabariam com aqueles inimigos de uma vez, sem que eles percebessem da onde tinha vindo o ataque!

Suas esperanças quanto a isso se acabaram quando Howard voltou a falar, agora em voz alta, para que todos ouvissem.

- A todas as sentinelas que estiverem ouvindo isso, saibam o risco que é nos atacar. Se formos mortos, certamente levaremos seu líder conosco e daqui a poucos dias vocês terão que enfrentar um batalhão inteiro vindo da capital em busca de nós, pois antes de virmos para cá eu garanti que uma mensagem fosse enviada à rainha, indicando que estávamos nos encaminhando para a casa do governador. Se não houver mais notícias, eles saberão que fomos mortos aqui, de qualquer forma. Não sejam burros, nos atacando. Que motivo há em morrer em vão? Eu lhes dou a chance de se renderem enquanto não for tarde demais.

O silêncio perpetuou-se no topo da colina e então, as flechas rapidamente sumiram de dentre as cortinas dos andares superiores da casa, e não mais retornaram.

Ilius segurava o punho da espada, pronto para investir contra os soldados, mas atrás dele e ao redor, seu grupo também estava cercado de soldados, todos prontos para batalhar, se necessário fosse.

- O que está acontecendo, Chase? – Indagou George quando, contrariando o próprio argumento, a princesa de Zerbet levantou a cabeça para olhar pela janela.

- Shhhh, fique quieto. Nada de bom, posso garantir. – Cochichou ela, quase que em um sussurro inaudível.

 Howard continuou a falar, dessa vez olhando diretamente para Fergursan. – Está preso governador, por extorquir o povo de Marcrof e se apropriar de seus bens.

Mas Fergursan o desafiava com o olhar, mesmo estando a espada tão mortalmente próxima. Ele riu-se baixo com aparente desdém. – Você foi inteligente, lorde. Aparecendo na minha casa assim, indicando que estava interessado em lucrar com a riqueza que eu, arduamente, adquiri. Mas você só queria saber onde estavam os itens, não é?

Howard deu de ombros. – E se possível, levar alguns como prova. Caso contrário, você ou seus funcionários poderiam sumir com tudo que foi roubado antes que o batalhão voltasse para a busca de evidências que serão apresentadas no seu julgamento. Guardas?

Os homens que cercavam o governador se aproximaram, acompanhados de mais quatro soldados e, enquanto alguns mantinham as armas a postos, prontos para atacar caso ele tentasse algo, outros amarraram seus braços bem apertado e o conduziram em direção a um dos cavalos. Mas Fergursan parecia estranhamente tranquilo, como se soubesse de algo que eles não sabiam. Ele olhava para Ilius, disfarçadamente esperando... os pelos da nuca de Howard se arrepiaram e ele sentiu o perigo quando viu o que o governador tinha visto antes dele: a luz do sol parecia refletir em algo brilhante, parcialmente oculto pelo cano da bota direita do homem de cabeça raspada. Os guardas que o cercavam ainda não tinham reparado, mas o lorde tinha certeza de que se tratava de uma arma... e havia outro detalhe que ele somente naquele momento tinha percebido, algo que fez seu coração bater como um tambor em seu peito... o olhar de Ilius tinha se fixado em algo à sua direita e o seu rosto cruel exibia um terrível sorriso. O pai de George acompanhou rapidamente o olhar e constatou, como ele temia, que a atenção do outro homem estava voltada para a carruagem. Do lado de dentro do veículo, Chase e seu amigo não tinham percebido ainda o olhar do inimigo, a princesa voltava-se preocupada para Howard, parcialmente oculta pela pequena janela. No entanto, Ilius a tinha visto, e sem dúvida, a tinha reconhecido e já arquitetava um meio de tirar proveito da presença da princesa para reverter aquela situação.

O tempo parecia transcorrer lentamente ao redor do lorde: o mais fiel dos subordinados ao governador pareceu tropeçar para somente então se abaixar e pegar a adaga que mantinha oculta. Simultaneamente, os demais aliados de Fergursan levantaram suas armas e investiram contra os soldados que os cercavam, confundindo-os e dando oportunidade para que Ilius atingisse seu objetivo. O homem moveu-se como uma serpente, apunhalando um dos oficiais que se pôs em seu caminho e logo em seguida abria a porta da carruagem com violência. Howard somente teve tempo de correr em direção àquela confusão, mas estava longe demais para fazer alguma coisa.

No instante seguinte, Ilius ressurgiu do lado de fora da carruagem, segurando ameaçador a lâmina da adaga no pescoço de Chase. A princesa não ousava virar o pescoço pois qualquer movimento brusco poderia alertar seu atacante e então, seria o fim. O sujeito surgia como uma sombra maligna atrás da herdeira, seu sorriso ainda mais largo, cruel, impiedoso. Ele se afastou lentamente do veículo, levando-a consigo, e não demorou para que um pequeno vulto conhecido aparecesse também na porta da carruagem, era George.

Howard olhava para a cena, lutando para manter a calma. Ele não via ferimentos em George, felizmente, mas a princesa estava correndo risco de vida. Mentalmente, ele se condenou por ter permitido com que Ilius se aproximasse tanto de onde as crianças estavam, e também de ter concedido que os dois fossem naquela viagem.

A voz do captor de Chase eram triunfantes. – Todos, larguem as armas. Vocês irão nos deixar ir, incluindo a Fergursan, ou verão a herdeira do trono sangrar até a morte.

Os soldados que batalhavam não muito distante dali olharam para a cena preocupados e, lentamente, fizeram o que foi mandado, enquanto os subordinados do governador apontavam-lhes as armas e empurravam suas espadas para longe de seu alcance.

Os demais oficiais, que antes acompanhavam Fergursan, olharam confusos para Howard, que assentiu devagar. Eles, então, soltaram o nó da corda que prendia os braços do governador, enquanto ele resmungava, ferozmente. – Rápido, não ouviram o homem? Detestaria ter que ver uma criança morrer, mas vocês sabem que Ilius não vai hesitar.

Tão logo se libertou, ele já se afastava dos oponentes, seu olhar pousado sobre Chase. – Então a jovem alteza decidiu viajar até minhas terras? Estou sinceramente honrado, pena que tenhamos nos encontrado em uma situação desagradável como essa. Mas vossa alteza não vai se importar em ordenar que seus soldados não tentem bobagens enquanto nós escapamos, vai?

Entre as cortinas das janelas, as flechas voltaram a surgir, ameaçadoras.

Chase mordeu os lábios e falou alto, para que todos ouvissem, o tom consideravelmente sereno, ocultando os verdadeiros sentimentos. - Não, não vou. Por favor, não tentem nada. – Ou a futura rainha vai morrer. – Completou Ilius, apertando mais a lâmina no pescoço da garota.

- Vamos soltá-la em algum momento durante nossa fuga. Não tentem nos seguir. – Declarou o governador, indicando a seus funcionários que tomassem os cavalos dos oficiais e eles assim o fizeram, principalmente aqueles que continham as sacolas das ocultas e estranhas riquezas que Fergursan amava tanto. Logo, se apoderaram da carruagem e Ilius começou a ir em direção a ela, andando de costas com Chase ainda à sua mercê, para que todos vissem e percebessem o perigo que seria tentar algo.

Mas Chase ainda não tinha desistido, nem ela e nem George. O menino tinha sido empurrado para longe, mas nenhum dos inimigos prestava particular atenção a ele, nem mesmo os arqueiros na mansão, as únicas pessoas que estavam atentas à sua presença eram Howard e Chase.

Bastou um olhar da princesa. Um olhar determinado para os outros dois, rápido demais para que Ilius percebesse. Eles sabiam que ela planejava algo e, talvez ela precisasse de uma distração.

E George já tinha decidido que seria essa distração. Naquele momento, os três pareceram conversar silenciosamente, e entenderam cada palavra que disseram um ao outro. Só haveria uma chance e Howard sabia que se falhassem, Chase estaria perdida. Mas ele também conhecia a fama do homem de cabeça raspada. Sabia que ele não deixaria Chase viver, nem mesmo se eles deixassem os inimigos escaparem impunes. Fergursan e seus homens iriam seguir seu caminho então, e Ilius teria a satisfação de matar mais uma de tantas vítimas.

“Não podemos nos dar ao luxo de falharmos. Então, não falharemos”, pensou ele, determinado.

E então George pegou uma pedra solta no chão, mirou e arremessou com toda a força que conseguiu.

O projétil deslocou-se no ar com tamanha rapidez que para os demais era somente uma sombra desfocada quando atravessou o espaço livre e atingiu o ombro direito de Fergursan, gerando uma dor excruciante que o fez recuar cambaleante.

Isso causou o efeito esperado: Ilius, que antes prestava atenção na princesa, voltou-se rapidamente para seu líder e procurou pelo atacante, afrouxando levemente a pressão da lâmina sobre o pescoço da jovem, até que o metal gelado não estava mais em contato com sua pele. Isso deu a Chase a chance que ela esperava... rápida como um raio, ela pisou no pé direito do sujeito ao mesmo tempo que atingia seu tórax com um dos cotovelos.

Surpreso pela dor instantânea, Ilius involuntariamente afastou ainda mais o braço com a adaga do pescoço de Chase, o que a deu oportunidade para escapar. Ela correu o máximo que pôde, com o homem em seu encalço, mancando. Flechas lançadas das janelas atravessavam seu caminho, mas Fergursan sinalizava para que parassem de atirar. Se ela morresse ali, eles não teriam uma suposta moeda de troca e estariam perdidos.

Mas Ilius não se importava mais com isso, ele queria vingança. E isso foi a sua ruína.

Ao mesmo tempo, Howard levantou a espada, acompanhado dos demais oficiais ao seu redor. Seu olhar cruzou o rosto assustado da menina que corria em sua direção. – Alteza, abaixe-se! – Gritou ele e Chase obedeceu, se jogando no chão e deslizando sobre a terra da colina, levantando uma nuvem de poeira que cegou o seu perseguidor.

Assim, ele não percebeu o gesto de Howard quando levantou a espada acima de sua cabeça, se preparando para lançá-la. Ele não viu quando a lâmina ameaçadora da arma girou como um bumerangue em direção ao seu alvo. E ele não entendeu quando olhou para baixo, tomado de dor, e viu uma espada atravessada em seu peito.

E foi a última batalha de Ilius.

Chocados ao assisti-lo desabar no chão, inerte, os demais subordinados do governador não apresentaram muita resistência quando os soldados recuperaram suas armas e os cercaram novamente. Eles não tinham mais a refém, sua maior vantagem, e a precisão assustadora de lorde Howard assustara até mesmo o mais destemido daqueles homens. Eles não se arriscariam ainda mais, sabendo que não havia motivos para os oponentes não investirem com as armas em punho. Não por Fergursan. Alguns ainda tentaram fugir, se embrenhando no mato para longe daquela situação, sem olhar para trás. Um pequeno grupo de soldados se aglomerou ao redor de um soldado caído, aquele que tinha sido esfaqueado por Ilius, e o ajudaram a se levantar. O sangue ainda escorria pelo ferimento, mas felizmente não parecia ser nada grave e provavelmente, ele estaria curado dentro de algumas semanas.

Mas o perigo ainda pairava no ar, quando Howard ajudou a princesa a se levantar. Os sentidos da moça estavam à flor da pele e então, ela finalmente viu o brilho ofuscante da ponta da flecha quando era apontada na direção do lorde, em uma das janelas mais próximas. Os instintos de Chase a fizeram agir antes mesmo de pensar.

- Cuidado! – Gritou ela enquanto empurrava o nobre para longe dela, no exato momento em que a flecha atravessou o espaço vazio entre eles, se fincando no chão de terra barrenta, discretamente mortífera. Os dois se viraram rapidamente na direção da origem do ataque.

Dentro da mansão, os arqueiros se prepararam para atirar novamente, mas o lorde foi mais rápido e quando eles se viraram naquela direção, conseguiram ver a lâmina novamente no pescoço do governador, enquanto um grupo realmente furioso de oficiais tornou a amarrá-lo. – Agora sim, governador, você está preso. Soldados, amarrem os subordinados desse sujeito, levaremos todos para a cidade de Marcrof. Incluindo os arqueiros...

Com essas palavras, as flechas novamente desapareceram de cada janela, por entre as cortinas dos muitos quartos, como se nunca tivessem existido.

Alguns soldados invadiram o casarão, em busca dos criminosos, mas eles desapareceram, sem deixar vestígios.

- Deixem que fujam, como seres desonrosos que são. Irei mandar um grupo de busca atrás deles e dos que fugiram pela mata.

- Ah, esses eu o desafio a encontrar. – Comentou Fergursan, dando de ombros enquanto era empurrado para perto de um cavalo imenso no qual um homem com capacete de soldado lhe esperava sombrio. – São homens de Duan. Ou pelo menos eram, quando ele era vivo. Ruan, o filho, me emprestou alguns de seus arqueiros para proteção individual.

Howard riu-se, sarcástico. – Sim, imagino que ele não tenha cobrado nada por esse serviço... Quantas moedas de ouro foram entregues para o rei dos ladrões? Quantos tesouros roubados você entregou a ele em troca dos serviços???

- Prefiro contar os detalhes que me forem perguntados no dia do julgamento. Agora, me leve logo, estou ficando entediado com essas conversas.

 

Poucos dias depois, eles estavam chegando na cidade capital de Wansfort e não estavam sozinhos: o grupo surgia do horizonte com o dobro de soldados de antes.

Logo depois da captura dos subordinados de Fergursan e do próprio governador, o líder do conselho de lordes havia feito uma carta para a rainha, requisitando um envio maior de efetivo de oficiais para auxiliar no transporte dos presos, o que proporcionara um grupo de vigília bem mais extenso, com montaria suficiente para levar todos os antigos empregados do governador, incluindo os capturados dentre o grupo de foragidos, e algumas sacolas cheias de artefatos do povo de Marcrof, que seriam utilizadas como prova no julgamento de Fergursan. Como era de se esperar, os arqueiros de Ruan não foram capturados, mas Howard não ignoraria a presença deles em Marcrof. As informações coletadas seriam registradas para fins de futuras investigações.

Quanto ao possível golpe a seu velho amigo, o lorde Ronan, ele faria as devidas queixas ao conselho de lorde, para que determinassem as ações a serem tomadas. Howard garantiria que um grupo de oficiais fosse enviado ao castelo do responsável pelo condado de Marcrof, para auxiliar na sua segurança enquanto os governadores eram interrogados quanto à pretensão de tomada do poder do condado.

Chase e George não falavam muito, enquanto a carruagem passava pelas últimas árvores da floresta e atravessava os limites de Wansfort. De fato, eles andavam muito silenciosos desde o ocorrido. Nenhum dos dois jovens imaginara que correriam tamanho perigo quando, muitos dias antes, eles tinham partido daquela mesma cidade em direção ao extremo oeste.

Mas havia algo de diferente naqueles dois. Howard conseguia enxergar isso só de olhar.

George tinha visto uma batalha de perto, presenciado sua melhor amiga se tornar refém e enfrentado os inimigos, mesmo sendo muito menor que eles. Isso acendera uma chama de valentia no seu coração. O que antes, para ele, secretamente, era apenas uma dúvida, agora tinha se transformado em certeza: ele não estava se dedicando para se tornar um soldado só para deixar o pai orgulhoso, ele realmente queria isso. Talvez agora, pela primeira vez, ele não tinha mais dúvidas.

Já a jovem princesa tinha um novo brilho no olhar, muito embora ninguém mais além dela soubesse o verdadeiro motivo.

Tudo aquilo pelo qual tinham passado, toda aquela viagem e os perigos que tinham enfrentado, tinham finalmente afastado os terríveis pesadelos da herdeira. Ela não era mais assombrada por aquele fatídico dia, o dia em que sua mãe nunca mais fora a mesma, quando seu pai...

Pelo menos por enquanto, isso tudo tinha afastado esses pensamentos. E realmente, para ela, era um motivo de felicidade. Um motivo de alívio. Ela podia finalmente fechar os olhos e pensar em coisas boas, sem ter que se lembrar do sofrimento.

Ela havia refletido sobre sua participação na missão de lorde Howard. Talvez, afinal, se ela e George não estivessem estado com ele e os soldados durante a prisão de Fergursan, as coisas tivessem se desenrolado de forma diferente, talvez fosse mais simples para o lorde. Mas talvez não... ela lembrou-se da sensação ruim que tinha tido anteriormente, da vontade que a impeliu até aquela colina. “O destino me queria lá”, pensou ela, não pela primeira vez.

Ilius. Os homens de Ruan. A flecha fatídica.

Mesmo que as coisas não tivessem transcorrido de forma pacífica, talvez fosse para ser assim e ela finalmente deixou de se preocupar com aquilo. Simplesmente não haveria possibilidade dela compreender, naquela momento, como o destino realmente moldou o seu caráter com aquela pequena aventura.

Chase segurou a mão de George ao seu lado, no assento da carruagem, quando a multidão surgiu nas ruas de Wansfort ao seu redor, pessoas de todas as aparências fazendo seus trabalhos diários, a mistura de aromas atravessou a pequena janela e eles puderam sentir o cheiro dos pequenos campos de lavanda ainda intactos além das últimas casas, e o cheiro do ferro em brasas das grandes forjas da cidade, em pleno funcionamento e souberam que estavam em casa novamente, finalmente.

Ela se tornaria uma boa líder, um dia, assim como sua mãe era. E mesmo se ela tivesse dúvidas, haveria pessoas ao seu lado para ajudá-la quando precisasse. Pessoas como Sir Howard Staad, o fiel empregado do palácio, Flynn, ou mesmo sua mãe e os outros lordes do conselho. E como George, seu grande amigo, que se arriscara por ela ao atingir Angus Fergursan com uma pedra, sem ter em mãos qualquer arma para se defender.

O dia passou e o ex-governador e seus funcionários foram levados às celas do palácio, para aguardar o julgamento, que não tardou a acontecer. Como de praxe, foi presidido pela rainha Vitória, que em conjunto com um grupo de nobres, avaliou as evidências apresentadas por Sir Howard e ordenou que todos os pertences fossem levados para Marcrof, para serem devolvidos aos seus verdadeiros donos, assim como todo o resto que ficara na mansão de Fergursan. Os culpados foram levados novamente para suas celas, onde ficariam por muitos anos e foi somente quando soube desta notícia que Chase respirou, aliviada.

Tinha tudo valido à pena, afinal.

Mas aquela viagem também tinha servido a ela como um aviso: havia pessoas se aproveitando da situação precária em que o povo se encontrava, existiam predadores à espreita, aguardando pela hora de atacar. Daquela época em diante, ela jurou para si mesma que acharia, ela própria, um meio para ajudar aquelas pessoas. A Doença do Reino estava fora de controle, a fome atingia mesmo algumas das grandes cidades agora e era só uma questão de tempo até estender seus domínios para o restante de Zerbet.

Mas havia algo mais, algo que ficara em sua mente desde o dia da batalha na colina de Fergursan. Ela revia o momento em que Howard a salvara de Ilius, imaginando que ser uma princesa requeria não somente responsabilidade, mas proteção. Certamente, se tornar rainha era ainda mais arriscado.

Era verdade a importância da guarda real para a segurança da realeza, mas possivelmente... aprender a se defender fosse pertinente a ela como futura governante de todo um reino.

- O povo depende de mim... É um papel muito arriscado para depender totalmente do trabalho dos oficiais, por mais competentes que eles sejam. – Sussurrou ela para si mesma, ainda relutante. – Acho que eles merecem, eles e todos os outros de Zerbet merecem... que eu saiba me proteger caso o pior aconteça. Talvez seja útil algum dia...

A jovem moça ainda permaneceu alguns segundos sentada em sua escrivaninha, decidindo. Afinal, o que estava para fazer contrariava toda a tradição das mulheres na realeza, desde a fundação de Zerbet. – Mas esses tempos são outros, são mais violentos. É chegada a hora para algumas mudanças!

Chase abriu a porta rapidamente e atravessou o corredor apressada, antes que mudasse de ideia. Desceu a escadaria do palácio até o térreo e se dirigiu ao pátio. Os guardas abriram espaço para que ela passasse, fazendo uma breve reverência e no momento seguinte ela estava no jardim, onde as flores reluziam com a luz da manhã, e o som do vento se misturava com os barulhos da cidade e com o som mais alto e estridente das lâminas das espadas se chocando, enquanto os oficiais da guarda real treinavam, não muito longe dali. Chase respirou fundo e atravessou o pátio com facilidade, se aproximando da área de treino e ali estavam dois soldados recém graduados lutando habilmente em um grande círculo de terra batida. Ao seu redor observavam Sir Squif, o líder da Academia e ao seu lado, George Staad, seu futuro aluno. Os dois se curvaram levemente quando repararam sua presença, e a princesa respirou fundo mais uma vez, se preparando para falar.

- Vossa alteza veio observar os soldados? – Indagou Squif, respeitosamente, mas Chase balançou a cabeça negativamente.

- Eles são habilidosos, disso não há dúvida, Sir Squif. No entanto, hoje eu percebi que não posso depender totalmente dos outros, um dia a segurança do reino vai estar nas minhas mãos.

O homem franziu o cenho, confuso. – Alteza, perdoe-me, mas não entendi o que quis dizer.

- Estou dizendo que eu preciso aprender a me defender. Se vou me tornar a rainha, estou convencida de que isto é tão importante quanto as habilidades em diplomacia, e espero que nunca seja necessário, mas... depois do que eu vi em Marcrof, com salteadores e roubos de pertences, não poderia arriscar a vida dessas pessoas por ser indefesa.

George riu-se, brincalhão. – Indefesa? Alteza, eu conheço a senhorita muito bem, e tenho certeza de que “indefesa” não é a palavra certa para te definir.

- Estou lisonjeada, George, mas não é o suficiente.

- Mas alteza... – Continuou Squif. – A tradição é...

- Eu conheço a tradição, Sir Squif, mas o mundo mudou. E as normas da realeza devem entender isso. Mudanças são normais e vou garantir que elas ocorram, se for para o bem do nosso povo. Agora, me diga, por acaso no arsenal teria alguma orralin sobressalente para a princesa aqui?

 

Fim.


Copyright © 2020 de Bryan S. Duarte

Todos os direitos reservados. Este conto ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha do conto. 


Conheça também os meus outros contos no

Wattpad

 

Comentários

  1. Parabéns, pelo Conto e por pensar em TODOS os leitores 👏🏻👏🏻👏🏻

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas